Pesquisadores e professores do Distrito Federal estão preocupados com o impacto extremamente negativo que a proposta do governo distrital de reduzir em mais de 80% o orçamento da sua Fundação de Apoio à Pesquisa (FAP-DF) terá no desenvolvimento científico, tecnológico e social da região.
No dia 23 de outubro, o governador Ibaneis Rocha encaminhou à Câmara Legislativa do DF a Proposta de Emenda à Lei Orgânica (PELO) 18/2019 que visa reduzir de 2% para 0,3% o montante de recursos da receita distrital destinados anualmente à FAP-DF. Para se ter uma ideia do tamanho do rombo, se a proposta estivesse valendo para este ano, o orçamento de R$ 366 milhões cairia para meros R$ 69 milhões.
Desde 2014, após muitas reivindicações da comunidade científica, a dotação par a FAP-DF se tornou correspondente a um percentual da receita líquida do Estado. Esse percentual aumenta 0,2% a cada ano, chegando a 2019 a 1,6%. O objetivo e que até 2021, chegue a 2%.
O governador Ibaneis Rocha, em sua proposta protocolada no final de outubro, argumenta, no entanto, que existe um “descompasso” entre a dotação destinada e o seu uso efetivo. Em uma tabela com uma análise do comportamento orçamentário da instituição, anexada à carta aos legisladores, o governo demonstra que em 2015, apenas 23,4% dos recursos liberados foram empenhados; em 2016, foram utilizados 40.7%; em 2017, 30.2% e em 2018, apenas 16.4%. “A dotação obrigatoriamente alocada anualmente é muito superior ao que vem sendo empenhado. Entre 2015 e 2018, foi destinado ao todo, R$ 952,5 milhões para a FAP, dos quais apenas R$ 260,5 milhões foram empenhados. O saldo dessa diferença é de R$ 691,9 milhões, ou 72,6%, sendo que somente em 2018, esse saldo foi de R$ 250,9 milhões.” Ele destaca ainda que neste ano de 2019, dos R$ 379 milhões que foram autorizados, até o dia 27 de agosto havia sido empenhado apenas R$ 35,7, menos de 10% do total.
Mas os pesquisadores do Distrito Federal criticam a justificativa do governador, avaliando como uma medida míope e extremamente prejudicial para o desenvolvimento econômico e social da região. Segundo eles, ao apresentar a proposta, o governo oblitera fatores importantes e que dizem respeito à sua administração, como o contingenciamento sistemático do orçamento da Fundação e o enxugamento paulatino do corpo técnico da instituição, que hoje conta com menos de 10 funcionários efetivos.
“A conclusão do governador é falaciosa. A FAP-DF simplesmente não tem capacidade. O papel do governo deveria ser o de capacitar a instituição para que ela execute todo o orçamento. Essa dotação não foi executada em sua integralidade porque a FAP não tem capacidade executiva. Mas isso não significa que não exista a demanda por esse orçamento”, aponta o professor do Núcleo de Física Aplicada da Universidade de Brasília (UnB) e secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC-DF).
Segundo o professor, essa falha se reflete em verbas menores para editais importantes, para o pagamento de bolsas – da iniciação científica até pós-doutorado -, para o fomento de projetos importantes e de grande relevância para a região. “Cabe ao governo reestruturar a FAP-DF. Para citar um exemplo da inoperância, pesquisadores levam anos para ter resposta às suas prestações de contas. O governador deveria ter olhos para isso, para a capacidade operacional e à dinâmica de repasses também. Hoje, o prazo entre o lançamento e a execução dos editais é curtíssimo, quando o dinheiro é liberado, já está quase acabando o ano fiscal”, ressalta Laranjeiras.
“Fazemos um apelo aos deputados distritais para não aprovar um ataque dessa natureza à ciência e tecnologia do Distrito Federal”, acrescenta o professor.
Os cientistas ressaltam o importante papel da fundação de apoio para o desenvolvimento de ações regionais para a CT&I. São esses projetos que estimulam a criação de startups, a implementação de ações na área da Saúde e de segurança pública, entre outros.
Na UnB, por exemplo, os recursos da FAP-DF financiam projetos de pesquisa que envolvem professores e estudantes desde a iniciação científica até a pós-graduação. Financia também projetos para ampliar pesquisas em colaboração internacional.
Para a decana de Pesquisa e Inovação da UnB, Maria Emília Machado Telles Walter, essa atitude do governo induz a população a achar que não existe demanda por ciência e tecnologia no Distrito Federal. “Isso vai contra o desenvolvimento e fecha portas para jovens. O Distrito Federal possui um parque imenso de pessoas e instituições ligadas à ciência, com demandas dos cursos, da iniciação científica ao pós-doutorado.”
Segundo ela, apenas na UnB, existem mais de 600 grupos de pesquisa. Entre 2013 e 2018, esses pesquisadores publicaram mais de 20 mil artigos científicos. “Isso tem um potencial enorme para se transformar em inovação”, diz. Ela cita como exemplo o projeto Victor, uma parceria entre a Universidade de Brasília e o Supremo Tribunal Federal, para desenvolver soluções de inteligência artificial para trâmites processuais no Poder Judiciário.
“Essa estrutura precisa ser preservada. Não existe inovação sem pesquisa. E a FAP é fundamental no fomento aos bolsistas. Cortar isso, é cortar a fonte primária da cadeia de pesquisa e inovação”, defende a pesquisadora.
Quem mais sairá prejudicado, ressalta Walter, são os jovens das áreas menos favorecidas. “O perfil da UnB é de alunos bastante carentes. As bolsas de iniciação científica, que têm um valor baixo, mantêm esses estudantes na universidade. E isto tem um impacto social importante na região, pois esses jovens alavancam suas famílias”, diz a decana. Segundo ela, o corte drástico na dotação orçamentária da FAP-DF afetará mais a ciência básica.
Connie McManus, professora titular da UnB, compara a ciência a uma árvore, na qual a pesquisa básica é a raiz, a pesquisa aplicada, os ramos, e a inovação, os frutos. “Se não tem raiz, não tem como colher fruta. Teremos que comprar de fora. Isso é uma questão de soberania nacional”, alerta.
McManus também é enfática ao apontar que o governo deveria, ao invés de cortar verba, capacitar a FAP para que o investimento em CT&I no distrito seja eficiente. “Se não libera o edital, não se executa o dinheiro, e é claro que não que não haverá gasto. O governo não faz sua parte”, afirma.
Os impactos dentro dessa falta de repasse são evidentes, diz MacManus. “Os equipamentos vão ficando sem manutenção, faltam insumos para os laboratórios. As pesquisas vão ficando atrasadas com relação aos outros países. É preciso estar inserido em redes internacionais”, ressalta.
A professora da UnB destaca que a pesquisa que é feita em colaboração internacional tem, em média, 4,6 vezes mais impacto que a média mundial. “A média do impacto das pesquisas brasileiras gira em torno de 0.9 pontos. Mas quando nossos cientistas trabalham em colaboração com equipes internacionais, esse impacto chega a 90 pontos”, explica.
“Mas para ter esse impacto internacional, é preciso anos de desenvolvimento. Como querem comparar essa ciência que está estabelecida há séculos, com uma que está ainda começando? A pós-graduação brasileira tem apenas seis décadas. Estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste têm muitos cursos que não têm nem dois anos ainda. Como podem esperar que eles já tenham impacto internacional? É preciso investir para que eles cresçam com qualidade”, expõe.
Manifestações de apoio
Entidades científicas prontamente se manifestaram contrárias à PELO 18/2019. No dia 1º de novembro, a SBPC e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) enviaram uma carta à Ibaneis Rocha manifestando “surpresa e preocupação” com a proposta e solicitando ao governador que retire a proposta.
“Nesse momento, é preciso fortalecer a FAP-DF e não enfraquecê-la com a proposição de redução orçamentária. A aprovação da PELO 18/2019 compromete negativamente o futuro do Distrito Federal ao reduzir o aporte de recursos que poderiam ser destinados a preparar opções e soluções para colocar o Distrito Federal em posição de destaque no seguimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável”, argumentam as entidades.
O Conselho Nacional das Fundações de Amparo à Pesquisa (Confap) também manifestou profunda preocupação com a proposição do Poder Executivo do Distrito Federal. Em carta endereçada a Rocha, a entidade enfatiza a importância dos recursos definidos em lei para a consolidação do ecossistema de ciência, tecnologia e inovação em desenvolvimento no DF. “Foi projetando o futuro que uma ampla e longa mobilização da comunidade científica garantiu, no passado, os tão importantes e adequados recursos que hoje se pensa em reduzir, com significativo impacto nas instituições de ensino e pesquisa, bem como nas empresas, essenciais para o enfrentamento dos desafios à qualidade da vida no Distrito Federal”, aponta.
Nessa quinta-feira, 6 de novembro, seis ex-presidentes da FAP-DF enviaram uma carta, pedindo que o governador pondere sobre as graves implicações da proposta.
“A execução orçamentária da FAP-DF tem sido gravemente afetada pelo contingenciamento frequente de recursos e, também, pela ausência de uma estrutura de gestão que tenha como base um quadro de servidores públicos permanentes. Nesse momento, é preciso fortalecer a FAPDF e não enfraquecê-la com a proposição de redução orçamentária. A aprovação da PELO 18/2019 compromete negativamente o futuro do Distrito Federal. Trata-se de uma “solução” tradicional que dialoga com o passado. O momento é de pensar grande, com olhar estratégico e compromisso com o futuro. Esta é a vocação do DF e este é o ideal que norteou a ideia fundadora de Brasília”, ressaltam os seis signatários.
Procurada pelo Jornal da Ciência, a atual administração da FAP-DF preferiu não se manifestar no momento sobre a PELO, mas indica que ações para ampliar sua capacidade executiva já estão em andamento. “A Fundação de Apoio à Pesquisa reconhece o histórico de baixa execução orçamentária, mas a atual gestão está trabalhando para reverter esse quadro, por meio de editais, ações e parcerias que visam aumentar sua capacidade de execução. No momento, não nos pronunciaremos sobre o PELO 18/2019. Seguiremos focados em cumprir nossa missão institucional”, declarou, por meio da assessoria de imprensa.
Daniela Klebis – Jornal da Ciência