Refletir a democracia no Brasil é exigir a investigação de crimes políticos e pautar a educação como valor do País

No Ato em Defesa da Democracia Brasileira, realizado pela SBPC nessa quinta-feira, 5 de outubro, especialistas apontaram caminhos para que não ocorram mais ameaças políticas à liberdade democrática

O Brasil não poderá se considerar um país democrático se não retomar as investigações de seus crimes políticos, principalmente no período da ditadura militar, e se não considerar a liberdade como um objeto de ensino, a ser difundido nas instituições educacionais. Estes foram os principais diagnósticos apresentados por diferentes especialistas no Ato de Luta pela Democracia Brasileira, um evento realizado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) nessa quinta-feira, 5 de outubro.

O debate contou com a participação da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski; da presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Nader; do ex-deputado federal, Alessandro Molon, do ex-deputado Hermes Zaneti, que participou da Constituinte na década de 1980, da jornalista Hildegard Angel, da presidente do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), Leopoldina Veras, do diretor executivo da ICTP.br (Iniciativa para a Cidia-democraciaência e Tecnologia no Parlamento), Fábio Guedes Gomes, e do ex-presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Ricardo Marcelo Fonseca. A mediação foi do presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro.

A ato é parte das celebrações do primeiro Dia de Luta pela Democracia Brasileira, cuja data, 5 de outubro, foi escolhida por ser o dia em que a Constituição Federal de 1988 foi promulgada. A alusão ao marco democrático foi destacada pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. “Para mim, é uma data especial, porque foi a Constituição de 1988, o processo da Constituinte, que me introduziu na política institucional”, revelou.

A ministra relembrou os embates políticos da época, principalmente em 1985, quando se filiou ao Partido dos Trabalhadores (PT) para tentar eleger o ambientalista Chico Mendes como deputado estadual, enquanto também tentou uma cadeira como deputada federal.

“Queríamos levar as questões dos povos da floresta para a nossa Constituição. Infelizmente, eu não fui eleita, mas mesmo assim nós conseguimos um artigo maravilhoso na nossa Constituição, que é o artigo 225, que estabelece que todas as pessoas têm o direito de ter um ambiente saudável. É a partir desse artigo que se deriva todo o nosso arcabouço ambiental.”

Marina Silva também elogiou a importância de se refletir sobre a democracia e entender qual a visão do País sobre se constituir um ambiente democrático:

“Pensar a democracia é um esforço de compreender que a inteligência de poucos jamais substituirá a inteligência de todos, e os regimes democráticos existem exatamente para que a gente pare de ter pessoas predestinadas ao poder e à tomada de decisão, para que a gente tenha a escolha de decidir quem está mais apto para nos governar, a partir de um mandato. Lembrando que o ato de governar também não é governar para as pessoas, a gente tem que governar com as pessoas.”

Outra personalidade simbólica que participou da Constituinte na década de 1980, o ex-deputado Hermes Zaneti, afirmou que há muita alegria em ter participado deste momento histórico do Brasil, mas hoje há um desafio na implementação da Constituição.

Entre os fatores que mostram como os artigos escritos na Constituição ainda não estão presentes na realidade brasileira, o ex-parlamentar citou as 30 milhões de pessoas com fome e 70 milhões de pessoas que se encontram inadimplentes no País.

“A minha maior preocupação é que esse povo que trabalhou para a construção do texto constitucional seja também o destinatário dos benefícios, que o povo receba a estrutura social que merece.”

Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski também afirmou que pensar democracia é considerar, principalmente, a condição de vida das pessoas.

“Hoje há uma certa unanimidade em torno da ideia de que democracia significa a concretização e a efetivação dos direitos fundamentais, dos direitos humanos, compreendidos nas suas várias gerações ou dimensões. E essa concretização se dá não a partir de uma mera outorga do Estado, dos governantes, mas sim a partir das lutas sociais que reivindicam que esses direitos sejam colocados em prática.”

Presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Nader, apontou que o nosso desafio é trazer a democracia ao campo educacional, mostrando às novas gerações o que foram as conquistas e como tudo se refletiu na Constituição, mas também revendo a história do País e fazendo justiça a atores propositalmente esquecidos.

“Nós temos que lutar para que se imponha, em diferentes níveis, a verdadeira história do Brasil. A verdadeira história do Brasil tem que ser ensinada. E ela tem que ser ensinada pelos povos originários, pelos excluídos. Ela tem que ser ensinada para que vejam que a Constituição traz benefícios, e ensinada para mostrar que houve uma ditadura sim, uma ditadura violenta.”

Não existe democracia com crimes políticos sem solução

A jornalista Hildegard Angel trouxe ao debate a questão jamais superada da ditadura militar. Ela aguarda há anos que o País dê respostas sobre o desaparecimento e morte de sua mãe, a estilista Zuzu Angel, e de seu irmão, Stuart Angel.

“Eu não vivo numa democracia, porque uma democracia teria o interesse, nem que fosse mínimo, de encontrar pelo menos os ossos, o que resta dos ossos dos desaparecidos políticos. E não é só o interesse em encontrar, mas cogitar procurar, porque nem isso ocorre. Eu tenho o meu estoque de ossos para encontrar, os ossos do meu irmão, mas as famílias de desaparecidos políticos no Brasil têm uma montanha de ossos para encontrar, e não há qualquer respaldo para isso, esse assunto não desperta mais interesse.”

Em sua fala, Hildegard Angel também trouxe algumas iniciativas que o Governo Federal fez para tentar trazer respostas ao genocídio que o País viveu na ditadura militar, como a  Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instalada no governo de Fernando Henrique Cardoso e que foi encerrada em dezembro de 2022, negando a existência dos crimes políticos.

“Ao fim da ditadura, nós permanecemos um Estado sob a tutela dos militares, um Estado com medo permanente dos militares, e assim nós continuamos”, concluiu.

O secretário-executivo da Iniciativa para Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), Fábio Guedes Gomes, reforçou a importância de resgatar o período da ditadura, de modo a resgatar também o que ela representou ao País.

“Temos que lutar pelo nosso processo democrático, não somente olhando o campo partidário, mas também o processo cidadão, de luta por direitos e pela defesa da sociedade livre, fraterna e solidária. Não foram suficientes os 21 anos de ditadura nesse país para que a gente pudesse aprender, nas atrocidades do regime autoritário, o que é violência e barbaridade. Então, é preciso, de fato, a luta pela democracia e o exercício da liberdade.”

Para a presidente do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), Leopoldina Veras, o Brasil não pode olhar para o seu futuro esquecendo de seu passado. Dentro desse panorama, a especialista resgatou o papel das instituições federais de ensino. “Hoje, dentro do contexto educacional, nós ainda temos medo do que está por vir, questões que podem colocar em risco tudo o que foi conquistado nesses últimos 10 meses, com o retorno de um presidente eleito. Nós precisamos fortalecer o que foi a ditadura militar dentro das nossas instituições, de modo que isso não se repita.”

O papel das entidades educacionais também foi reforçado pelo ex-presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), e reitor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Ricardo Marcelo Fonseca.“A defesa da Constituição e a defesa da Democracia também têm uma dívida com as universidades e institutos federais. Eu não tenho nenhuma dúvida em dizer que nesse período obscuro que vivemos nos últimos tempos, um dos grandes baluartes da luta e da resistência democrática foram essas instituições. Porque quando chega ao poder um governo autoritário, com viés obscuro, essas instituições são extremamente atacadas.”

Ex-deputado federal, Alessandro Molon, reforçou a atenção não só no passado histórico da ditadura militar, mas também no autoritarismo recente, presente no Governo Bolsonaro, o que mostra, na sua opinião, que a luta pela democracia é contínua.

“Uma das características mais importantes dessa luta pela democracia é que ela precisa ser incessante, o preço da liberdade é a eterna vigilância. Se não vigiarmos, se não lutarmos pela democracia, se não defendermos a nossa Constituição, as conquistas podem ser perdidas, e nós vimos isso recentemente. Por pouco o País não sofreu um golpe de Estado, por pouco as liberdades e garantias duramente conquistadas não foram tomadas, arrancadas violentamente dos nossos braços.”

O presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, iniciou sua fala explicando a estrutura das instituições, e elogiando o papel do ministro Alexandre de Moraes, que, no comando do Tribunal Superior Eleitoral, conseguiu conter as tentativas de golpe nas eleições presidenciais de 2022. “É sempre bom lembrar que as instituições surgiram no final da Idade Média com o intuito de criar barreiras ao mau governo, para evitar que o governante perverso ou louco fizesse uma devastação muito grande.”

Janine Ribeiro ponderou que a democracia tem que ser maior do que um lado político, ou seja, ela não pode ser pauta apenas da direita ou da esquerda, mas comum a pelo menos os dois partidos ou coligações mais populares, a fim de que não haja grande risco de sua extinção. “Para termos democracia precisamos ter uma certa segurança de que os partidos com mais chance de se elegerem tenham compromissos democráticos, quando um partido não tem e tem chances de ser eleito, o cenário é muito perigoso para um país. É o que acontece nos Estados Unidos, com o Partido Republicano apoiando Donald Trump, e o que ocorre em outros países, como Hungria, Polônia e Itália”, disse.

O professor da USP e filósofo também destacou o papel da Ciência nesse processo de construção da democracia. “A ciência não é magia, a ciência não pode nos salvar da insensatez, mas ela tem papel essencial para as bases democráticas. O que temos que fazer é educar: educar as pessoas para serem sensatas, para serem críticas, para defenderem e garantirem a permanência da democracia”, concluiu.

O “Ato de Luta pela Democracia Brasileira” está disponível no canal do YouTube da SBPC.

Rafael Revadam – Jornal da Ciência