Em 2022 comemoramos 200 anos da Independência do Brasil, e também celebramos duas décadas de ciência e tecnologia no país. O tema foi discutido no painel “Bicentenário da Independência – A Trajetória das Ciências Físicas e Naturais no Brasil”, realizado de modo virtual durante a 74.ª Reunião Anual da SBPC nesta segunda-feira (25), às 16h.
O painel contou com a participação de Lorelai Kuri, pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), Silvia Figueirôa, professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Carlos A. L. Filgueiras, professor do Departamento de Química da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Henrique Antunes Cunha Júnior, professor do Centro de Tecnologia, Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Ceará (UFC), e foi coordenado por Ildeu de Castro Moreira, professor do Instituto de Física e do programa de pós-graduação em história das ciências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente de honra da SBPC.
Desde 1500 acontecem atividades científicas no Brasil, como viagens exploratórias, estudos cobre a cultura indígena, observações astronômicas, entre outras. Porém, a ciência como geração de conhecimento só passou a existir de fato no País a partir do século XIX – principalmente depois da independência. Mas foi um longo processo de desenvolvimento, que ainda enfrenta muitos percalços.
Para Kuri, o processo de institucionalização da ciência no Brasil foi longo e ainda está em andamento. A pesquisadora explica que portugueses e brasileiros publicavam pouco, e é preciso ter em mente o contexto em que isso se dava. “Essa cultura da publicação foi sendo construída, ou seja, não é um valor que existiu sempre”.
Embora as atividades mineiras sempre tiveram chamado a atenção da coroa portuguesa, as ciências geológicas se desenvolveram no País fortemente vinculadas à defesa e, especialmente, à agricultura, em busca de solos férteis para a lavoura, explica Figueirôa. A pesquisadora ainda aponta que permanece, no nível do discurso e do imaginário, a ideia de que o Brasil é um paraíso de tesouros minerais. Porém, a produção mineral atual atinge apenas cerca de 4% do PIB. “Embora esse descompasso entre o real e o imaginário, ou o desejado, não seja a única marca da geologia no Brasil, talvez seja uma das mais expressivas, porque estimulou pesquisas e se mantém ainda presente, seja no imaginário popular, seja no discurso dos governos, quando justificam projetos ambiciosos muitas vezes com impactos extremamente sérios”, enfatizou.
A química sempre esteve presente na vida humana, desde as culturas mais remotas, como conhecimento prático. Entretanto, a química científica como a conhecemos começou a esboçar-se a partir do século XVI, e a química moderna surge a partir do século XVIII. Filgueiras explica que o Brasil esteve presente em todas essas etapas: tanto nas aldeias indígenas como nos engenhos e fazendas, assim como nos conventos e em quartéis, muito se trabalhou com esses materiais e técnicas. Porém, o início de atividades mais regulares em química e seu desenvolvimento no País iniciou-se do século XIX, com a vinda da corte portuguesa, e se desenvolveu com a independência do Brasil. “Nós precisamos nos despir de vários preconceitos, como por exemplo, de que não havia ciência antes do século XX ou antes do século XIX. Depende do que se considera como ciência. Na química, por exemplo, havia muita coisa. Em Vila Rica, no século XVIII, se fazia análise química da mesma maneira que se fazia na Europa. Precisamos rever muitos aspectos da nossa história colonial do ponto de vista científico”, explicou.
Segundo Cunha Júnior, não é possível pensar a história da ciência brasileira desvinculada do papel dos negros. Embora a história da ciência moderna se inicie sob a supremacia dos brancos europeus, isso não significa os negros não tenham participado ativamente, nem que a herança da escravidão tenha impedido o protagonismo dos afrodescentes em inúmeros campos do conhecimento. Por outro lado, a própria ciência atuou na construção de estereótipos negativos em relação aos povos africanos e seus descendentes. “Enquanto os trabalhos sobre a população negra só forma divulgados nos meios negros, através de associações negras brasileiras, os outros trabalhos foram divulgados amplamente e considerados como ‘ciência universal’. Isso criou no Brasil um campo fabuloso de desigualdade social”, explica o pesquisador. “O pensamento científico brasileiro, em seu conjunto, foi bastante deletério às populações negras, afetando muito nossa estabilidade emocional, econômica e cultural”, concluiu.
Para Moreira, esse debate é importante para estimular a reflexão sobre nossa história, que continua influenciando como a ciência é tratada hoje no Brasil. “Este é um momento para reflexões sobre o nosso passado, que é ocultado e distorcido de tantas maneiras, para tenhamos uma percepção social mais ampla e profunda sobre nosso passado que possa nos ajudar em nosso presente, que está tão difícil, e para que possamos construir em conjunto um futuro diferente”, afirmou.
Assista ao painel na íntegra:
https://www.youtube.com/watch?v=Ogogr0OkOyc
Chris Bueno – Jornal da Ciência