“A administração pública precisa ter regras muito claras e explícitas de boa gestão, mas muitas dessas regras acabam inibindo a boa gestão. É uma coisa realmente fantástica a opção brasileira pela burocracia; toda vez que você tenta melhorar uma coisa [no sentido de desburocratizar], vem alguém e atrapalha. Temos um problema muito sério nesse quesito.”
A avaliação do filósofo, ex-ministro da Educação e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Renato Janine Ribeiro, foi feita na conferência de encerramento do 4º Encontro de Fundações de Apoio do Sudeste (Enfasud), realizado nesta semana na UFMG. O evento foi organizado pela Fundação de Apoio da UFMG (Fundep), que completa 50 anos em 2025.
Realizada na Escola de Engenharia, a conferência de Renato Janine, que é professor da USP, teve como tema Fundações de apoio, ciência e democracia: desafios éticos e estratégias para o progresso social. “Toda pessoa que já passou pela gestão pública brasileira sabe como é difícil gastar um dinheiro que tem finalidade positiva. Temos de mudar nisso. Precisamos de uma administração pública mais ágil, mais preocupada em fazer as entregas para a sociedade do que em garantir o respeito às formas [de se chegar às entregas]. Não que as formas sejam irrelevantes; elas apenas são menos importantes que o conteúdo, menos importantes que o fim”.
Janine prosseguiu em sua argumentação defendendo a agilidade “não como um deságio do rigor, mas como compromisso ético [com a sociedade a que a administração pública atende]. Temos de pensar que a realidade da universidade é diferente da realidade da administração pública em geral. Temos que ser menos burocráticos.”
Foi nesse contexto que o professor da USP avaliou o papel das fundações de apoio. “Elas são uma forma de injetar mais reflexão sobre [a preponderância das] atividades-fim dentro do mundo acadêmico. Não é à toa que elas podem e conseguem ter a agilidade que muitas vezes não conseguimos ter em outras questões. As fundações são um instrumento extraordinário de fortalecimento das universidades”, reconheceu ele.
Financiamento compatível
Renato Janine foi recebido pela reitora Sandra Regina Goulart Almeida, e pelo presidente da Fundep Jaime Arturo Ramírez, reitor da UFMG na gestão 2014-2018. A reitora aproveitou o contexto temático da mesa para defender que se estabeleça, no país, uma política nacional de financiamento para as Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), na perspectiva de política de Estado. O objetivo é que as instituições não fiquem à mercê da disposição ou indisposição dos governos de apoiá-las.
A reitora propôs que o país inverta a lógica ético-orçamentária com que tem tratado as Instituições Federais de Ensino Superior. Em vez de exigir que as instituições se adaptem continuamente aos valores destinados a elas, os governos precisam estabelecer previamente um repasse condizente com o que se espera que essas instituições realizem para o país. “Se governo e sociedade querem que cumpramos com nossa missão precípua, é preciso que tenhamos o orçamento adequado para realizar nossas ações”, afirmou.
História da ciência, pensamento ético e um projeto de Brasil
Para chegar às conclusões pragmáticas sobre a administração pública, a especificidade das universidades e a burocracia estatal, Renato Janine deu uma espécie de aula-preâmbulo sobre a história da ciência e do pensamento ético. Nela, ele começou por estabelecer duas distinções: entre o mundo do conhecimento (das descobertas e da produção de saber abstrato sobre a realidade) e o mundo da ética (da invenção e da ação, realizadas com base nesse saber pré-estabelecido); e a distinção entre a ciência medieval (de natureza contemplativa, não interventiva) e a ciência moderna (que busca produzir um efeito sobre o mundo).
Segundo Renato Janine, ocorreu um problema na transição da ciência medieval (“que de científica mesmo não tinha nada”, ele ressalvou) e a ciência moderna. “A ciência moderna quer tornar o homem senhor e possuidor das coisas. Ora, ao fazer a ruptura com a ‘ciência’ medieval e introduzir a ideia de conhecimento rigoroso, a modernidade vai acabar abrindo mão da ética. De repente, passamos a procurar não mais simplesmente contemplar as belezas da natureza, mas fazer com que ela passasse a servir aos nossos desígnios. Esse é o empreendimento moderno. A modernidade é, essencialmente, isso, e conhecemos bem os ganhos e os danos que essa perspectiva acarretou”, disse.
Janine então defendeu que o tempo presente é marcado por uma busca da aplicação ética do conhecimento produzido. “Não queremos uma ciência que sirva para se saber, por exemplo, o quanto uma pessoa é capaz de aguentar de tortura até que ela confesse. Não queremos uma ciência que faça destruição. Queremos uma ciência que faça coisas positivas para a humanidade”, exemplificou. “Então esse é o nosso desafio: tratar bem a natureza e não mais usá-la como algo que você pode espoliar”, disse Janine, sem se furtar de lembrar das disputas ambientais atualmente em jogo no Brasil, cujo episódio mais recente foi a sessão do Senado realizada, na última terça-feira, 27 de maio, em que a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, foi ofendida por três senadores. “Foi um episódio absolutamente vergonhoso”, resumiu o presidente da SBPC.
Por uma ética do ‘sim’
Janine também defendeu uma superação da “visão negativa” da ética e clamou pela ascensão de uma “ética do sim”, de caráter afirmativo. “O código penal, por exemplo, lista uma série de crimes que não podem ser cometidos. Se a pessoa não cometer nenhum desses crimes, isso quer dizer que ela é uma pessoa ética? Não. Quer dizer apenas que ela não é criminosa. Isso não significa que ela é, necessariamente, uma pessoa boa. Uma pessoa pode não cometer crimes por ter medo de ser presa ou, por exemplo, simplesmente por achar que deve cumprir a lei porque ‘a lei é a lei’. Já uma pessoa ética olha para toda essa situação e toma sua decisão independentemente do medo da punição e independentemente de sua ação estar ou não cumprindo uma lei. Dito de outro modo, uma pessoa ética não é aquela que simplesmente não rouba, não furta, não mata. Uma pessoa ética é aquela que busca promover o bem na sociedade”, cravou.
Promover o bem, sim, mas em qual direção? Quais parâmetros devem ser adotados? A sugestão de Janine Ribeiro é que seja lançado um olhar em direção à Constituição de 1988 e para os documentos balizadores da dignidade humana estabelecidos ao longo das últimas décadas, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e o conjunto de Objetivos do Desenvolvimento Sustentável definido pela Organização das Nações Unidas (ONU) no início do século 21. “A Constituição brasileira começa dizendo que o Brasil quer ser uma sociedade justa, próspera e solidária. ‘Próspera’ diz respeito a prosperidade, dinheiro, mas ‘justa’ e ‘solidária’ são valores éticos. E logo em seguida ela diz que o Brasil quer erradicar a pobreza. Isso é então muito importante. Devemos voltar a falar em um projeto nacional ético, e esse projeto deve focar no fim da miséria e da pobreza: isso deveria ser uma urgência nacional”, afirmou.
Ao defender a retomada da discussão sobre um projeto nacional, Janine insistiu que as balizas para esse projeto já estão dadas na Carta Magna. “Nossa constituição tem capítulos absolutamente programáticos, que apresentam um projeto para o país. É uma constituição propositiva, que diz – sobretudo em seu artigo terceiro – o que país o Brasil quer ser. Temos que transformar essa Constituição em algo real, fazer com que aquilo que foi sonhado há 40 anos seja transformado em realidade. Quarenta anos são bastante tempo, e avançamos pouco nisso, ainda que tenhamos tido importantes progressos nos governos de Fernando Henrique Cardoso e do PT. Mas temos então de criar entre nós um tecido de compromisso, um tecido social importante, associando as pessoas a todo esse empreendimento, que só pode ser coletivo”, concluiu Renato Janine Ribeiro.