Rio Doce – O que aprendemos?

No último dia da Reunião Regional da SBPC no Espírito Santo, na Ufes, em Vitória, especialistas analisaram os impactos do rompimento da barragem do Fundão, da mineradora Samarco/Vale-BHP, e discutiram os desafios da reparação ambiental e social
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Foto: Jardel Rodrigues/SBPC

Entre os vestígios de um episódio que ainda define os rumos da região, a mesa-redonda “Rio Doce – O Que Aprendemos?” reuniu especialistas na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), na sexta-feira (21/02), último dia da Reunião Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em Vitória, para examinar os desdobramentos do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG), da mineradora da Samarco/Vale-BHP, ocorrido em 5 de novembro de 2015. A sessão analisou os impactos da liberação de 39 milhões de metros cúbicos de rejeitos na Bacia do Rio Doce – tragédia que resultou em 19 mortes e provocou alterações nos municípios ao longo do percurso de 670 km até a foz, no Espírito Santo, e cujos efeitos ainda reverberam no meio ambiente e na vida das pessoas.

A discussão, coordenada pela diretora da SBPC, Laila Salmen Espindola, reuniu acadêmicos e especialistas, como o professor Diego Jeangregório Martins Guimarães, da Universidade Vale do Rio Doce (Univale), João Carlos Alciati Thomé, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), e o reitor da Ufes, Eustáquio Vinicius Ribeiro de Castro, para falar sobre as medidas de reparação e prevenção de novas tragédias.

A disputa de narrativas e a crítica ao modelo de reparação

Professor de Direito e pesquisador do Observatório Interdisciplinar do Território (Obit) da Univale, Diego Jeangregório analisou o conflito de narrativas em torno do evento, ressaltando que expressões como “desastre de Mariana” ou “rompimento da barragem” acabam por ofuscar os responsáveis e evidenciar as vítimas. “O desastre tem responsável, que tem nome e sobrenome”, disse, referindo-se ao complexo minerário Samarco, joint venture entre BHP Brasil e Vale.

Jeangregório criticou os mecanismos de reparação adotados após o desastre, ressaltando a assimetria dos impactos sobre os afetados. Ele destacou que, embora os danos ambientais possuam efeitos difusos que alcançam toda a sociedade, determinados grupos – especialmente aqueles já mais vulneráveis – sofrem de forma mais direta e acabam sendo silenciados e invisibilizados pelos programas de reparação. “Nesses anos todos, vimos uma crescente invisibilização”, apontou.

O professor da Univale enfatizou a necessidade de se aplicar de forma efetiva o princípio da reparação integral, que abrange: indenização, reparação, restituição, compensação, mitigação dos danos e impactos, satisfação das vítimas e garantia de não repetição dos desastres. Ele questionou o que se aprendeu nesses anos todos, sobretudo no que diz respeito à classificação do risco das barragens e à mensuração dos impactos, para evitar novos episódios semelhantes.

Jeangregório também criticou a estratégia empresarial de individualizar os danos, que, ao promover o ressarcimento imediato, acabou por colocar os atingidos uns contra os outros, fragilizando a ação coletiva. Segundo ele, a Fundação Renova – organização criada e financiada pelas mineradoras para gerir as ações de reparação –, em vez de garantir soluções eficazes, acabou ampliando os conflitos ao assumir a condução do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC). A entidade operou por meio de 42 programas, mas suas decisões frequentemente ignoraram as deliberações do Comitê Interfederativo, intensificando a judicialização dos processos e criando múltiplos eixos processuais que dificultaram as reparações.

A extinção da Fundação Renova, determinada pelo Acordo de Repactuação em novembro de 2024, transferiu a responsabilidade da reparação definitiva para a Samarco, os governos federal e estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo e os municípios que aderirem ao acordo. Para Jeangregório, o novo modelo de governança é um avanço, mas a experiência com a Renova evidencia a necessidade de fortalecer mecanismos que impeçam que futuras reparações se tornem novos vetores de conflitos. “As ações de reparação não repararam os danos. Pelo contrário, vê-se novos danos decorrentes das próprias ações de reparação”, afirmou.

A “tragédia da tragédia”: impactos ambientais ampliados pela reparação

João Carlos Alciati Thomé, que coordena desde 2015 o Programa de Monitoramento da Biodiversidade impactada pela tragedia do Rio Doce, apresentou dados relativos ao monitoramento ambiental na região da barragem de Fundão, destacando a trajetória dos sedimentos que se estendeu até a costa, afetando áreas do Espírito Santo e da Bahia. Ele destacou o que chamou de “tragédia da tragédia”, referindo-se aos danos causados não apenas pelo rompimento da barragem, mas também pelas tentativas de reparação que, em alguns casos, ampliaram os impactos negativos. “A reparação, muitas vezes, gera um dano ainda maior que a própria tragédia”, afirmou.

Segundo Thomé, o Espírito Santo teve mais tempo para se preparar – ao contrário de Minas Gerais -, e diversas instituições, como ICMBio, Ibama e Ufes, organizaram um monitoramento antes da chegada dos rejeitos. “Fizemos sobrevoos, usamos satélites, realizamos coletas em campo. Quando a pluma chegou, a água já estava degradada, carregando alumínio, ferro, cromo, arsênio, mercúrio… praticamente a tabela periódica inteira”, contou.

O especialista também destacou a complexidade da resposta ao desastre. “Não foi apenas o que vazou da barragem que chegou à costa, mas tudo o que vinha sendo usado na mineração de Minas Gerais por séculos”, afirmou. Para enfrentar esse cenário inédito, uma rede de 28 instituições foi mobilizada, e um programa de monitoramento da biodiversidade foi estabelecido. “Não tínhamos modelos para nos espelhar. Foi um processo difícil, e ainda estamos construindo formas de lidar com diferentes vazões e impactos ao longo dos anos”, acrescentou.

Thomé destacou que os relatórios do monitoramento, já em sua quinta edição anual, estão disponíveis ao público e continuam a orientar as ações na região. Ele também comentou a recente repactuação oficializada por decreto do governo federal e o encerramento da Renova, com a gestão da reparação passando para o setor público. “Foi reconhecido que o modelo anterior não funcionou. Agora, as empresas têm 18 anos para cumprir suas obrigações”, afirmou, acrescentando que as unidades de conservação impactadas também serão ressarcidas.

Ao concluir, o analista do ICMBio refletiu sobre a dificuldade de mensurar a magnitude do que ocorreu. “Desastre, tragédia, acidente, porcaria, acontecimento, fenômeno… é algo tão gigantesco que ficamos perdidos em como nomeá-lo. Mas temos que aprender com essa lição para evitar que algo parecido aconteça no futuro”, alertou. Para ele, a atuação do poder público e da sociedade será essencial na próxima década. “Espero que os próximos 10 anos sejam melhores do que os 10 que passaram.”

reitor da Ufes, Eustáquio Vinicius Ribeiro de Castro, explicou a formação do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática da Área Ambiental (PMBA), destacando sua importância na avaliação dos impactos ambientais ao longo do Rio Doce. Segundo ele, o projeto inicial previa a construção de uma governança abrangente, que cobriria desde Mariana (MG) até a foz do Rio Doce, estendendo-se de Guarapari (ES) até Abrolhos (MG), com a participação de 26 universidades. No entanto, Minas Gerais não aderiu à iniciativa, o que resultou na divisão da rede. Dessa forma, a parte capixaba do projeto reuniu 23 universidades e mais de 200 doutores, contando atualmente com 560 pesquisadores e 40 subprojetos em diversas áreas do conhecimento.

“Criamos um modelo de governança ultramoderno. Na repactuação, a Ufes foi a única universidade citada, e será responsável por este projeto por mais 10 anos, só com o PMBA”, destacou.

O reitor também comentou os desafios enfrentados pela universidade, especialmente no que diz respeito à relação com a Fundação Renova, que financiava o PMBA. “Enfrentamos resistência porque o PMBA era pago pela Renova, e fomos criticados por essa parceria. Mas, na verdade, essa participação foi uma imposição dos órgãos públicos, num esforço para garantir que as universidades estivessem envolvidas no processo”, explicou.

Ele ressaltou que a Ufes precisou integrar o processo para garantir a presença de uma instituição pública na produção dos relatórios de monitoramento. “A Ufes fez acordo com a Renova por obrigação, para garantir que houvesse um acompanhamento científico independente na elaboração desses relatórios, mas fomos muito criticados por quem não entende o processo. Estaremos sempre em parceria com a sociedade”, afirmou.

Assista à íntegra do debate

A mesa-redonda “Rio Doce – O Que Aprendemos?” está disponível no canal da SBPC no YouTube, neste link.

Daniela Klebis – Jornal da Ciência