Desinformação e fake news na área da saúde, em especial envolvendo vacinas, são antigas. Basta lembrar que em 1904, notícias falsas em um ambiente político crítico provocaram a Revolta da Vacina no Rio de Janeiro, que resultou em 30 mortos, 110 feridos e 945 prisões. A crise foi revivida em 2020 com a pandemia de covid-19, em que uma quantidade impressionante de desinformação e fake news levou centenas de milhares de pessoas a rejeitar vacinas – o que contribuiu para que o Brasil fosse o segundo país do mundo em vítimas fatais da doença, com mais de 700 mil mortos até o 2022.
Nestes mais de cem anos há vários episódios lamentáveis, mas a frequência de fake news ganhou escala com a internet e, mais recentemente, a popularização das redes sociais. Já no fim do século, entre 1999 e 2000, espalharam-se várias mentiras sobre as vacinas para idosos contra a gripe – as mais comuns eram de que produziam demência, que poderiam deixar os homens impotentes e que foram feitas para matar os idosos com o objetivo de diminuir a crise da Previdência Social.
A vacina contra febre amarela foi lançada no Brasil nos anos 1940. Mas, oito décadas depois, em 2024, foi retirado do ar um vídeo adulterado e reproduzido milhões de vezes nas redes sociais que manipulava imagens de uma reportagem da TV Globo, de 2018, sobre a morte de duas pessoas devido a supostos efeitos colaterais da vacina de febre amarela em São Paulo, relacionando aqueles óbitos ao imunizante contra a covid-19, que só chegou ao País dois anos depois.
Quando em 2014 a vacina contra o HPV começou a ser aplicada no Brasil, outra onda de desinformação e fake news surgiu com força, com mentiras de que o imunizante serviria para estimular precocemente a vida sexual das crianças e o aborto. O que se viu foi o surgimento de um “pânico sexual” alimentado principalmente por machismo, define Igor Sacramento, pesquisador em Saúde Pública do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde da Fiocruz (Icict/Fiocruz) e coordenador do Programa de Pós-graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/Icict/Fiocruz).
“Eram coisas dantescas, se a gente imaginar que não tinha nada a ver, era uma forma de prevenção de uma doença com agravos muito sérios, especialmente pra mulheres”, comentou.
Já em relação ao coronavírus, as resistências surgiram já na primeira vacina que combatia a influenza H1N1, também chamada de gripe suína. Atacado por boatos e desinformação, o imunizante vinha sendo pesquisado e desenvolvido desde o início dos anos 1990, porém, o que circulava – e circula até hoje – entre a população é que ele tinha surgido muito rapidamente, do nada, mesmo com os cientistas explicando que houve uma aceleração do desenvolvimento devido ao interesse global, já que a gripe na primeira década do século forçou a população a cancelar viagens e desacelerou a economia mundial.
Quando chegou a pandemia de covid-19, os boatos espalhados pela internet ganharam um poderoso impulso: o presidente da República e seus apoiadores negacionistas da doença. “Na pandemia da covid isso se intensifica no Brasil com um processo de institucionalização de narrativas antivacina pelo Estado. Isso é inédito, nunca tinha havido uma oposição às vacinas pelo próprio Estado brasileiro e pelos seus principais representantes, ministros e governadores, prefeitos e o próprio presidente da República”, diz o pesquisador da Fiocruz.
A ignorância sobre como as vacinas são produzidas, levando ao temor sobre os efeitos dos imunizantes, é comum, afinal o Estado nem sempre cumpre com o que deveria: a obrigação de informar a população por meio de campanhas públicas e transparência de informações.
O mais grave, no entanto, é que o círculo vicioso de desinformação atinge quem supostamente conhece, estudou, tem informação e compromisso com a ciência: os médicos. Sacramento vem desde 2020 conduzindo pesquisas de acompanhamento de grupos de médicos em redes sociais como WhatsApp e Telegram onde encontrou verdadeiros ninhos de antivacinas, muitos deles foram descontinuados durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 no Congresso Nacional.
Com um grupo de bolsistas, o pesquisador da Fiocruz acompanhou diariamente as mensagens trocadas pelos profissionais. Atualmente, sua equipe de pesquisa segue cinco grupos no Telegram, cinco no WhatsApp, cada um deles com aproximadamente 100 mil participantes.
“São médicos negacionistas que mantêm práticas extremamente antiéticas nesses grupos, vendendo atestados para que pessoas não se vacinem, não vacinem os filhos, dizendo que se o filho tem autismo, ele não pode se vacinar. É uma banalização total da prática médica, muito grave isso”, comenta.
A equipe de pesquisadores coordenada por Sacramento já publicou vários artigos e está para lançar um livro com a sistematização dos resultados, incluindo grupos acompanhados nos Estados Unidos. Como resultado desses estudos, ele identificou dois componentes principais que levam à desinformação e, consequentemente, à hesitação ou negação da vacina. Um é o neoliberalismo e o outro são as redes sociais.
Para ele, o avanço do neoliberalismo como condução da vida – não apenas como político econômica – com ênfase no individualismo, leva as pessoas a escolhas individuais e à responsabilização desse indivíduo pela sua própria saúde. Nesse momento em que há um crescimento da percepção de risco, a vacina se torna perigosa para essa ideologia, às vezes mais do que a doença, até pelo seu componente coletivo – em determinadas doenças como a covid-19, a imunização precisa ser de todos.
Já as redes sociais, segundo ele, geram o que define como “comunidade cismada”. “A cisma é diferente da desconfiança, a desconfiança tem como centro a dúvida, a pessoa desconfia de alguma coisa, mas está aberta de certa maneira um diálogo. A cisma não, a cisma não se coloca no diálogo, ela se fecha nela mesmo”, explica.
A publicação completa está disponível para download gratuito neste link. Acesse e compartilhe!
Janes Rocha – Jornal da Ciência