SBPC, ABC e Andifes enviam carta ao ministro Paulo Alvim em defesa da CT&I

“O mundo precisa de Ciência, o Brasil precisa de Ciência. Precisamos de um pacto com a sociedade – sinalizar a todas as pessoas para onde a nossa Ciência está caminhando. Para isso, é fundamental que seja refeito o pacto social pela CT&I e pela Educação. Ou seja, a sociedade brasileira precisa dizer claramente o que quer e o que espera da CT&I e da Educação”, escrevem no documento

São Paulo, 14 de junho de 2022

SBPC-105/carta conjunta

 

Excelentíssimo Senhor

Ministro PAULO ALVIM

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI)

Brasília, DF.

Senhor Ministro,

 

A Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) entendem que a construção de uma Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (PNCTI) para o Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI) deve ter, como primeira referência, a Constituição Federal, que já no seu art. 3º define os objetivos fundamentais do Brasil, enquanto República Federativa, destacando-se a erradicação da pobreza e das desigualdades regionais, a formação de uma sociedade livre, justa e solidária, o fim de toda sorte de discriminação e o desenvolvimento nacional. À Carta Magna somam-se inúmeras leis, votadas desde a Constituinte, que valorizam os bens públicos que são educaçãociênciasaúdeproteção do meio ambientecultura inclusão social. Tanto a PNCTI como o SNCTI precisam estar articulados com esses propósitos.

Estas entidades entendem o esforço que está sendo feito pelo MCTI no sentido de ter um texto balizador sobre a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, porém, em função do papel que desempenham na sociedade civil brasileira, não subscrevem o texto uma vez que necessita de aprimoramento e discussão ampla entre os diferentes atores, o que não será atingido colocando-o em consulta pública sem o devido debate.

Não vamos realizar nesse breve texto uma análise exaustiva dos vários aspectos que necessitam de debate para aprimoramento. O texto, como está hoje, é na nossa opinião uma carta incompleta de intenções e sem aprofundamento dos temas, de como é a gestão e de como se fará o financiamento.

Já no capítulo Introdução, no primeiro parágrafo, o texto peca pela falta de compreensão da economia do conhecimento, só mencionando avanços de um novo padrão de geração de riquezas. Falta a visão de meio ambiente, sustentabilidade e desenvolvimento social. Não menciona a agenda 2030, da qual o Brasil é signatário. É fundamental deixar claro que as sociedades do conhecimento devem se basear em quatro pilares: liberdade de expressão; acesso universal à informação e ao conhecimento; respeito pela diversidade étnica, cultural e linguística; e educação de qualidade para todas as pessoas. Nada disso é sequer mencionado.

Em relação ao Art. 218 da Constituição Federal. o documento não leva em conta seu parágrafo § 1º: “A pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação.” Para a Política tal como está descrita, a CT&I tem enfoque econômico direto, não se enxergando as etapas para chegar na chamada tecnologia e inovação. Portanto, antes de mais nada, é preciso incentivar a ciência básica e aplicada, com suas aplicações tecnológicas e sua repercussão na economia mediante várias formas de inovação, como garantido pela Constituição brasileira.

Cabe aqui lembrar publicação recente do Fundo Monetário Internacional que afirma que a pesquisa básica é um insumo essencial para inovação, com amplas repercussões internacionais e impactos duradouros. Referido documento afirma que a pesquisa científica básica é crucial como motor de produtividade e se propaga além das fronteiras mais rápido do que o conhecimento aplicado (ver International Monetary Fund. 2021. World Economic Outlook: Recovery during a PandemicHealth Concerns, Supply Disruptions, Price Pressures. Washington, DC, October).

O documento proposto inclui oito grandes desafios para Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (PNCTI). Na nossa visão está sendo simplista e negligencia um outro elemento relevante. Há necessidade de entendimento e implementação do marco legal de CT&I por todos os atores do sistema: poder executivo, judiciário e legislativo federal, estadual e municipal e sociedade civil. Não conseguimos, até o presente, que Executivo, Legislativo e Judiciário atuem de acordo com a norma vigente.

Avaliemos rapidamente alguns desafios. Em relação ao desafio 2, que deveria abordar o aprimoramento e promoção de um modelo de financiamento e de investimentos públicos e privados, estável e suficiente, alinhado com uma visão prospectiva ou de futuro da CT&I e centrado na interação entre os setores governamental, acadêmico e empresarial, não se indica no anteprojeto nenhum modelo, nem fontes de financiamento, nem modos de articulação.

O desafio 4 não fala do empobrecimento da nação e não aborda a janela de oportunidades que está acabando para o país em relação à pirâmide demográfica.

Fala-se na sociedade do conhecimento, mas não se mencionam, no desafio 6, as oportunidades e os investimentos que seriam necessários para a tecnologia da informação, entre outras, na educação, que precisa ser tratada como bem público social, imprescindível para o bem-estar e a cidadania. O desafio 7, voltado à promoção da sustentabilidade, solidariedade, inclusão e o bem-estar por meio da CT&I, não cita a agenda 2030, da qual o Brasil é signatário.

É também necessário anotar que a maior parte da pesquisa no Brasil, inclusive a de patentes, se faz no ambiente universitário, em especial nas instituições públicas, que devem, por conseguinte, contar com financiamento público estável e autonomia para darem continuidade ao importante trabalho que vêm exercendo. Acresce que instituições de ensino superior são decisivas para formar pessoas altamente qualificadas, imprescindíveis para o desenvolvimento econômico e social em nossos dias, quando a inteligência passou a ser fator mais importante, na economia, do que somente a força de trabalho. Esse fato também implica a necessidade de uma ampla igualdade de oportunidades no acesso a todos os níveis de educação, de emprego e de liderança, o que por sua vez requer políticas fortes de inclusão social, capazes de identificar, reconhecer e promover talentos e vocações tradicionalmente ignorados, devido à desigualdade e injustiça sociais que subsistem em nosso País há séculos.

Também é preciso definir prioridades de pesquisa, a partir de dois princípios. Primeiro, o Brasil deve identificar os campos e corpos de pesquisa nos quais pode obter liderança e protagonismo mundiais. Entre eles, obviamente figuram nossa biodiversidade, uma das maiores do mundo, e o que podemos chamar nossa etnodiversidade, sendo nosso País composto de mais de duzentos grupos étnicos que formam nossos povos originários e, além deles, completado por uma imigração que faz com que nas maiores cidades nacionais se falem entre cem e duzentas línguas diferentes, pelo menos, dos quatro cantos do Globo. A Amazônia, com suas riquezas naturais, sua etnobiodiversidade e importância para o clima do planeta, merece políticas nacionais de C&T que possam garantir o aproveitamento sustentável de suas potencialidades e a proteção e desenvolvimento sociais de seus povos, hoje intensamente ameaçados.

Na última Estratégia Nacional de C&T, datada de 2016 e vigente até 2022, constam vários campos que são prioritários para o País, que devem ser atualizados, mas, sobretudo, cumpridos, o que leva a considerar dois fatores: 1) nossa capacidade de pesquisá-los, por contarmos com um corpus notável e com um corpo de pesquisadores qualificado; 2) nossa necessidade de priorizá-los. Assim, no caso do combate à fome, contamos com terras agricultáveis numa proporção muito elevada (o corpus), com um corpo de pesquisadores qualificados, na Universidade e na Embrapa, para não falar em outras instituições, e finalmente temos obrigação de assegurar a todas as pessoas os nutrientes necessários para viverem dignamente.

Além disso, um País de nossas dimensões não pode deixar de participar de toda pesquisa de ponta que esteja sendo realizada no mundo, mesmo que não tenha papel de liderança na mesma – o que, dados os grandes recursos econômicos e a dimensão dos laboratórios requeridos, nem sempre é possível. Isso implica que, por meio de convênios, estágios sêniores, pós-doutorados, doutorados e doutorados-sanduíche, entre outros instrumentos, tenhamos pesquisadores lotados no Brasil que participem, online ou em períodos temporários, das atividades dos principais grupos de pesquisa atuantes no mundo e, assim, garantam a transmissão à comunidade científica e produtiva do País do que está sendo feito de mais novo e relevante na ciência como um todo.

Finalmente, deve ser levado em conta como o progresso da ciência poderá desenvolver o País e seu povo, erradicando a miséria e a pobreza, pondo fim à fome, que tem crescido estes últimos tempos, fazendo o Brasil retornar ao mapa do qual tinha saído há cerca de dez anos. Para tanto, deve ser conduzida uma discussão permanente sobre a apropriação social dos ganhos proporcionados pela ciência, inclusive na economia, procurando-se assegurar sua repartição justa.

Dados estes pontos de partida, é indispensável que:

  • a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação seja definida a partir de ampla discussão dos principais atores seus, a saber, as universidades líderes na pesquisa científica, os institutos de pesquisa federais e estaduais, as agências de fomento federais, estaduais e universitárias, os poderes públicos, as lideranças do setor produtivo, público ou privado, os povos originários, aqueles que trabalham nas áreas científica e tecnológica e, por fim, os trabalhadores em geral;
  • a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação explicite como será feita a gestão e qual serão o tamanho e a fonte do financiamento para a ciência brasileira, pois o documento encaminhado é apenas uma carta de intenções;
  • a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação vá além do MCTI e traga enfoques dos outros ministérios e das secretarias estaduais;
  • a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação discuta o mundo globalizado, as diferentes fontes e formas de inovação, a inovação como um processo de interações, os investimentos públicos e privados, entre outros tópicos;
  • a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação descreva como pactuará com o Decreto Nº 534, de 28 de outubro de 2020 sobre Política de Inovação que não foi discutido no âmbito do CCT;

Incluímos aqui, para fins de discussão e tomadas de posição, uma livre tradução de parte do artigo “Science, Technology, and Innovation Policy: Old Patterns and New Challenges”, de Cristina     Chaminade     e  Bengt-Åke Lundvall,  2019 (https://oxfordre.com/business/view/10.1093/acrefore/9780190224851.001.0001/acrefore-9780190224851-e-179):

“Embora seja comum usar o termo política de CTI como um tipo de política, pode-se pensar o termo como três tipos diferentes de políticas “ideais” – política científica, política tecnológica e política de inovação – cada uma com características distintas (Lundvall & Borrás, 2005). A política científica trata da promoção da produção do conhecimento científico e, como tal, trata da alocação de recursos entre as diferentes atividades científicas. A política científica pode servir a diferentes objetivos, desde a pura curiosidade sobre a compreensão do mundo até objetivos militares específicos, como a bomba atômica (Jaffe et al., 2015). A política científica às vezes é baseada em um modelo linear onde se supõe que os esforços de pesquisa se traduzirão mais ou menos automaticamente em resultados econômicos e sociais. 

Em certo sentido, a política de inovação incorpora a política de ciência e tecnologia na medida em que visa intervir no processo de inovação como um todo – da ciência (exploração) à aplicação de tecnologias específicas, sua introdução no mercado e sua ampla difusão (exploração). A política de inovação dá atenção não apenas ao conteúdo científico e tecnológico das inovações, mas também ao quadro institucional e às mudanças mais amplas necessárias para que as inovações sejam introduzidas no mercado e utilizadas. Também presta atenção a outras formas de aprendizagem além da ciência e tecnologia que também podem levar a inovações como aprender fazendo, usando ou interagindo. 

A política pode então ser entendida como a ação deliberada dos governos na economia com o objetivo de atingir objetivos por meio do estímulo a mudanças no comportamento de indivíduos e organizações. Quando se trata de políticas de CTI, o objetivo é afetar a taxa e a direção dos processos dentro de CTI. Ao projetar e aplicar políticas, os governos precisam ter uma teoria de como a inovação funciona em geral e evidências empíricas de como ela funciona em um determinado país, região ou setor.” 

  • o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia da Presidência da República tenha maior protagonismo dos produtores de ciência e tecnologia e realize reuniões regulares, cabendo-lhe definir políticas nacionais (e não apenas federais) de promoção da CTI, em estreita articulação com as instituições de ensino superior e com os estabelecimentos de educação técnica;
  • além do CCT, sejam criados os conselhos que forem necessários, articulando, sempre no respeito recíproco, os atores federais, estaduais, municipais, as instituições de pesquisa e de ensino superior, bem como organizações e entidades que promovam a pesquisa ou dela façam uso;
  • o Sistema é Nacional e não Federal. Cabe à União liderá-lo, mas sempre respeitando a diversidade de vozes no seu interior e fornecendo, aos diversos atores, meios de realizarem projetos de interesse ou impacto regional;
  • o SNCTI tenha por meta melhorar as condições de vida do povo brasileiro e, por extensão, do planeta, estando articulado com o fim da pobreza, a garantia de um meio ambiente equilibrado e saudável, a ampliação da expectativa e qualidade de vida, a expansão do acesso à educação e de sua qualidade, a criação e acesso à cultura, entendendo-se que a pesquisa científica de qualidade procurará harmonizar-se com estes propósitos;
  • Conferências e Planos Nacionais, assim como regionais, serão instrumentos importantes para definir o progresso do País na ciência, tecnologia e inovação.

A Ciência é para a sociedade. O mundo precisa de Ciência, o Brasil precisa de Ciência. Precisamos de um pacto com a sociedade – sinalizar a todas as pessoas para onde a nossa Ciência está caminhando. Para isso, é fundamental que seja refeito o pacto social pela CT&I e pela Educação. Ou seja, a sociedade brasileira precisa dizer claramente o que quer e o que espera da CT&I e da Educação.

Atenciosamente,

RENATO JANINE RIBEIRO

Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

HELENA BONCIANI NADER

Presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC)

REITOR MARCUS VINICIUS DAVID

Presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES)

Veja o texto em PDF.

Jornal da Ciência