Além de premiar duas cientistas brasileiras de destaque, o 2º Seminário “SBPC e as Mulheres e Meninas na Ciência” abordou a importância da mulher na ciência, as dificuldades enfrentadas, e os desafios para avançar na carreira. O evento foi realizado nessa terça-feira, 11 de fevereiro, em São Paulo pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em comemoração ao “Dia de Mulheres e Meninas na Ciência”, estabelecido pela Unesco em 2015. Nesta edição, o destaque foi a cerimônia de entrega do 1º Prêmio “Carolina Bori Ciência & Mulher”, no qual a vencedora foi a biomédica Helena Bonciani Nader e a socióloga Alice Rangel de Paiva Abreu recebeu a “Menção Honrosa”.
As premiadas foram apresentadas pela vice-presidente da SBPC, Fernanda Sobral, e pela conselheira entidade, Vanderlan da Silva Bolzani. “Helena Nader já contribuiu muito para o avanço da ciência no nosso país, seja como pesquisadora, como gestora e como articuladora da política de CT&I. Sem esquecer nunca da sua preocupação com a justiça social. A ciência para ela deve servir também para se ter um país mais desenvolvido e justo. E ela luta por isso com garra”, disse Sobral, ao lembrar que Nader foi uma das principais responsáveis, enquanto presidente da SBPC, pela criação do Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação.
Bolzani, idealizadora do prêmio, entregou a menção honrosa à Alice Rangel de Paiva Abreu ressaltando sua trajetória. “Alice é uma grande cientista social deste País. Para mim, é uma honra homenagear cientistas como ela. No mundo onde nós crescemos, é importante ressaltar o papel dessas mulheres, que têm contribuído para que nós possamos almejar sempre um lugar melhor e sustentável. O mundo só será mais justo, mais igualitário, quando tivermos essa discriminação de gênero diluída”, afirmou.
Nader dedicou o sucesso de sua trajetória às pessoas que a incentivaram. “Se eu cheguei aonde cheguei é porque tive pais, mestres e estudantes que acreditaram em mim e foram parceiros. Meus pais acreditaram em mim, apesar de não terem recursos, me deram o que era mais importante: a educação. Sempre gostei muito de estudar e tive professores-chave para atingir tudo o que atingi na vida — professores que me motivaram a pensar e questionar desde a pré-escola”, disse.
Em sua palestra, Nader, que é biomédica e professora titular da Universidade Federal de São Paulo, contou um pouco sobre o importante trabalho científico que desenvolveu nas áreas da glicobiologia e glicoquímica. A cientista estudou as estruturas de polímeros e polissacarídeos e como, juntos, eles conferem função às moléculas. Em uma de suas pesquisas, descobriu que alterações nesses compostos poderiam se tornar marcadores para segmentos de tumores. Em outro estudo, observou como funciona a heparina, polissacarídeo que impede a coagulação do sangue e é muito utilizado na medicina. A partir de suas pesquisas, muitos produtos e medicamentos novos se originaram.
Para a vencedora do Prêmio Carolina Bori, a homenagem da SBPC é ainda mais significativa. Nader tem uma longa história com a instituição, que começa quando ainda era universitária, ainda em 1969. Foi conselheira, vice-presidente e, depois, presidente por três mandatos, entre 2011 e 2017. “Eu tive a honra de ser a terceira presidente mulher da SBPC, depois das queridas Carolina Bori e Glaci Zancan. Glaci foi minha professora em um curso em Curitiba, patrocinado pela Unesco. Tivemos e temos muitas mulheres na SBPC, e espero ver mais delas na liderança dessa entidade que me orgulha tanto.”
Abreu, em sua conferência, falou sobre as etapas no avanço da carreira científica que distinguem as trajetórias das mulheres. Segundo apontou, há uma percepção de que houve mudanças significativas na base do sistema para permitir que o avanço das mulheres, mas a distribuição ainda é bastante desigual nas diferentes disciplinas e nas posições mais altas da carreira. “Desde 2004, as mulheres já são a maioria ao concluir o doutorado. Desde 1990, são a maioria ao conseguir o título de mestre. Elas também são a maioria entre estudantes nas universidades e são maioria ao concluírem os estudos”.
A cientista acredita que isso se deve, em parte, a um sistema de bolsas complexo, diversificado e descentralizado, cuja distribuição é feita pelos cursos e com base no mérito, bem diferentes das bolsas de Produtividade em Pesquisa (PQ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que, conforme aponta, são determinada por comitês formados, em sua maioria, por homens.
“Antes, poderiam até dizer que isso acontecia porque as mulheres não tinham qualificação necessária ou faltava interesse, mas a literatura mostra que, na verdade, o que existe é um problema institucional e estrutural”, afirma.
Abreu citou alguns dados do relatório GenderInSITE, intitulado “Trajetória de sucesso – trazendo uma lente de gênero para liderança científica dos desafios globais”, que foi criado para promover o papel das mulheres na ciência, inovação, tecnologia e engenharia. O documento explora a questão da liderança das mulheres na ciência e traz à discussão algumas questões relacionadas que geralmente não são levadas em consideração. Por meio de entrevistas com mulheres e homens que lideram projetos internacionais de ciência e tecnologia, destacam-se diferentes caminhos para o sucesso e como a mudança institucional é tão furtiva e difícil de alcançar.
“Percebemos alguns problemas que apareceram sistematicamente nos relatos das cientistas. Entre eles, o compromisso para enfrentar um problema/um desafio, e não apenas uma estratégia de ascensão na carreira; a força para enfrentar pressões e obstáculos; ter contatos de modelos e exemplos a seguir; desenvolver habilidades de lideranças; criação de redes; e reorganizar culturas organizacionais”, enumera Abreu, que é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ao olhar para trás, a socióloga faz um paralelo entre esses pontos e sua própria carreira, e lembra que veio de uma geração onde as meninas eram induzidas a fazer o ensino médio ‘clássico’ e os meninos o ‘científico’. “Era uma separação nítida entre homens e mulheres. Nem nos ofereciam o científico. Nunca tive uma aula de física, matemática, por exemplo, e isso me fez questionar várias vezes se não teria optado por outra área se tivesse tido maior contato com essas outras disciplinas. Por isso, acredito que é preciso que homens e mulheres tenham as mesmas oportunidades”, afirma.
Por outro lado, comenta, a carreira científica tem uma característica de ser longa e faz as pessoas fazerem concessões – e para a mulher, isso tem um impacto significativo em sua trajetória. “Insisti na decisão de fazer uma universidade, continuar estudando, de fazer um mestrado, um doutorado, mesmo que em alguns momentos tive atritos entre a vida pessoal e a profissional, como todas as mulheres, e fiz concessões. Tive muitos momentos tensos”, disse acrescentando a importância das colaborações em redes de trabalho, entre elas, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), na qual foi secretária executiva.
Abreu afirma que a presença e a contribuição das mulheres na pesquisa são inegáveis, mas os debates sobre como avançar para um cenário de equidade de gênero é necessário e deve ganhar expressão em espaços de gestão e produção científica. “Um artigo publicado em dezembro na revista Nature reforça o poder dessa diversidade na ciência. O texto cita que para termos uma ciência eficaz e de excelente qualidade, é preciso termos uma integração dos conceitos de sexo e gênero, e tem de estar na própria construção do objeto.”
Longo caminho para paridade de gêneros
Na mesa de abertura do evento, intitulada “Meninas e Mulheres cientistas: a importância de incentivar e reconhecer os talentos no Brasil”, Adriana Tonini, diretora de Engenharias, Ciências Exatas, Humanas e Sociais do CNPq, concorda que as meninas precisam de estímulos e referências para seguirem nas áreas que quiserem, principalmente nas de exatas. “Assim que entrei no CNPq criei a ‘Chamada Meninas nas Ciências Exatas, Engenharias e Computação’. Temos que atingir essas meninas já no ensino fundamental porque se chegarmos nelas no ensino médio elas já terão desconstruído ‘o gostar’ das áreas de exatas, como matemática e física. Não há área do conhecimento difícil. Basta motivarmos”, disse Tonini.
Tonini, que fez engenharia, disse que as mulheres são criadas para cuidar, já que nascem com uma boneca do lado, e que essa criação muitas vezes atrapalha a carreira. “As mulheres, quando recebem um convite, pensa no marido, no filho, no cachorro, no gato. Pensa em todo mundo, depois em sua carreira. Por isso, a nossa trajetória é mais difícil e nossa responsabilidade com tudo nos dificulta a ter uma carreira linear. Isso é muito claro no CNPq. As mulheres só correspondem a 20% das bolsas de prestígio (PQ1A) do CNPq, e na PQ2, são 35%. Temos um longo caminho para atingir a paridade desses números. Ainda tem a questão da faixa etária. As mulheres atingem a bolsa PQ1A na faixa dos 50-54 anos, já os homens 45-49 anos. Mas acredito que isso vai mudar, já que as mulheres representam 60% das bolsas de iniciação científica e que se seguirem a carreira acadêmica, quem sabe teremos mais que 20% delas com bolsas PQA”, afirma.
A falta de referências e modelos que despertem o interesse das meninas pelas ciências foi abordada por Zaíra Turchi, diretora do Departamento de Infraestrutura de Pesquisa e Políticas de Formação e Educação em Ciência, unidade da Secretaria de Políticas para Formação e Ações Estratégicas do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (DEPPE/SEFAE/MCTIC). “Referências são importantes e por isso, esse prêmio é muito importante. Essas mulheres são referências na ciência e elas nos inspiram e nos mobilizam por várias causas. A Alice, por toda a sua trajetória, e a Helena, que além de professora universitária, tem um papel importante na gestão pública, sendo este último um espaço ainda menos ocupado por mulheres”, afirma.
“Também concordo que já avançamos bastante e podemos ver que mulheres brasileiras são cientistas de excelência e que tem um lugar significativo no mundo da ciência. Estamos muito melhores que países europeus. Avançamos na criação de protocolo e legislação. A mudança não é uma questão de tempo, mas é uma questão de construção. Por isso, temos que fazer. Isso não é dado. Temos que nos movimentar, nos mobilizar para trazer as mudanças necessárias para termos uma igualdade de gênero nesta área”, acrescentou Turchi.
Turchi também concorda que é preciso incentivar e abrir espaço para novos talentos entre as meninas. “É preciso mostrar que elas podem fazer qualquer área da ciência. E por isso, estamos criando oportunidades para isso. Um deles é trazer o Gender Summit, que será realizado em novembro, para o Brasil. Este evento só foi realizado até então duas vezes na América Latina: México e Chile. Sabemos que o preconceito existe nas academias e nas agências de fomento, mas vimos na última edição deste evento que foi realizado em Amsterdã, que as mulheres têm muito mais chance de serem escolhidas quando não sabem o gênero dos estudantes”, disse.
O prêmio
O Prêmio “Carolina Bori Ciência & Mulher” é uma homenagem da SBPC às cientistas brasileiras destacadas e às futuras cientistas brasileiras de notório talento, que leva o nome de sua primeira presidente mulher, Carolina Martuscelli Bori. Em celebração ao Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, instituído pela Unesco, a cerimônia de premiação ocorre anualmente, alternando duas categorias – “Mulheres Cientistas” e “Meninas na Ciência”. Esta primeira edição homenageou a primeira categoria, dedicada às cientistas brasileiras destacadas de instituições nacionais, que tenham prestado relevantes contribuições à ciência, gestão científica e ações em prol da ciência e tecnologia nacional.
O 2º Seminário “SBPC e as Mulheres e Meninas na Ciência” e o Prêmio “Carolina Bori – Ciência & Mulher” contaram com o apoio da ABlink e apoio institucional do Centro Universitário Maria Antonia e do programa “Para Mulheres na Ciência” da L’Oréal Brasil.
Assista aqui o seminário na íntegra.
Vivian Costa – Jornal da Ciência