SBPC envia carta a deputados contra o ensino do criacionismo em escolas

A entidade quer que permaneça no ensino o princípio da laicidade e liberdade de crença garantidos pela Constituição federal.
          São Paulo, 28 de novembro de 2014
SBPC – 122/Dir. 
Aos Excelentíssimos Senhores
Deputados federais
Câmara dos Deputados
Senhores Deputados,
No último dia 13 de novembro, o deputado Marco Feliciano apresentou o PL 8099/2014 que propõe a inserção de conteúdos sobre criacionismo na grade curricular das Redes Pública e Privada de Ensino. Esse projeto foi apensado ao PL 309/2011, de autoria do mesmo deputado, que “Altera o Art. 33 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino religioso nas redes públicas de ensino do país”. Ambos projetos serão apreciados pela Comissão de Educação (CE) e pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania(CCJC) de forma conclusiva. 
O PL 8099/2014, em seu § 1º do Art. 1o, determina que os conteúdos sobre criacionismo “devem incluir noções de que a vida tem sua origem em Deus, como criador supremo de todo universo e de todas as coisas que o compõe” e no § 2º do mesmo artigo diz que “didaticamente o ensino sobre criacionismo deverá levar ao estudante, analogamente ao evolucionismo, alternância de conhecimento de fonte diversa a fim de que o estudante avalie cognitivamente ambas as disciplinas”.
Como é do conhecimento dos senhores, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) foi criada em 1948 com a missão de defender e promover o avanço da educação, ciência e tecnologia, buscando remover os empecilhos e incompreensões que dificultam o progresso da ciência, de modo a contribuir com o desenvolvimento econômico e social das sociedades humanas, bem como para o bem-estar das pessoas.
E por isto, não podemos deixar de nos posicionar quanto ao projeto em questão, que em nossa avaliação, não deve continuar sua tramitação por estar repleto de equívocos, os quais apontamos abaixo.
1. ENSINO RELIGIOSO NÃO É OBRIGATÓRIO NAS ESCOLAS
O Brasil é um Estado laico, não tem uma religião oficial. Sua Constituição Federal assegura a liberdade de crença religiosa a todo cidadão brasileiro (Art. 5o inciso VI) e determina a separação entre Estado e Igreja (Art. 19 inciso I).
Em relação ao ensino religioso nas escolas, o texto constitucional diz que “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental” (Art. 210, § 1º da CF). Em 1996, a Lei nº 9494, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, complementou esse dispositivo constitucional, estabelecendo em seu Art. 33 que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo”. 
Desta forma, a Constituição brasileira deixa claro que é permitido às escolas oferecerem aos alunos o ensino religioso em sua grade curricular, contanto que não haja nenhuma forma de indução de obrigatoriedade de participação do aluno em tais aulas ou de preferência por uma ou outra religião. 
Na prática, o art. 210 da CF, ao mandar fixar conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum, abre o espaço, nas escolas públicas, para o ensino religioso. O entendimento do Conselho Nacional de Educação é de que a Constituição apenas reconhece a importância do ensino religioso para a formação básica comum do período de maturação da criança e do adolescente que coincide com o ensino fundamental e permite uma colaboração entre as partes, desde que estabelecida em vista do interesse público e respeitando – pela matrícula facultativa – opções religiosas diferenciadas ou mesmo a dispensa de frequência de tal ensino na escola. 
É inaceitável, portanto, que o criacionismo no âmbito do ensino religioso seja obrigatório, como proposto pelo PL 8099/2014, pois fere a Constituição Federal.
2. A TEORIA DA EVOLUÇÃO NÃO É CRENÇA, É CIÊNCIA
A descoberta e o entendimento do processo da evolução representa uma das maiores conquistas na história da ciência. A evolução explica com sucesso a diversidade de vida na Terra e tem sido confirmada repetidamente por meio de observação e experimentos em uma ampla gama de disciplinas científicas. A ciência evolucionária foi que deu a base para o surgimento da moderna biologia, abrindo caminho para novos tipos de pesquisa médica, agrícola e ambiental, além de ter proporcionado o desenvolvimento de tecnologias que têm ajudado a prevenir e combater doenças que afligem a humanidade.
O estudo da evolução é um excelente exemplo de como os cientistas trabalham, do método científico. Eles observam a natureza e fazem perguntas sobre o mundo natural que podem ser testadas por meio de experimentos e novas observações, e depois constroem explicações e teorias, baseadas em evidências. Na Ciência, uma teoria é uma explicação compreensível de uma característica da natureza que é apoiada por muitos fatos ao longo do tempo, permitindo que os cientistas façam predições acerca de fenômenos não observáveis.
O conceito de evolução é apoiado pela descoberta de fósseis, que revelaram mudanças nas espécies ao longo do tempo. O avanço do conhecimento científico reforça tal conceito e esclarece como ela funciona. O registro fóssil, a pesquisa com DNA, a evidência de que espécies têm ancestrais comuns, entre outras descobertas, somam evidências fortes que a evolução pela seleção natural é como a vida na Terra surgiu e se tornou diversa.
Segundo Karl Popper, um importante filósofo da ciência, uma teoria científica deve ser falseável empiricamente, ou seja, se as proposições observacionais dela deduzidas forem falseadas, a teoria será considerada falsa. Suas conclusões devem ser confrontadas com os fatos. Para Popper, o alvo do cientista não é descobrir uma certeza absoluta, mas descobrir teorias cada vez melhores, capazes de ser submetidas a testes cada vez mais severos. Mas isto significa que essas teorias devem ser mostradas falsas: é pela verificação de sua falsidade que a ciência progride.
O estudo da evolução atende às premissas da Ciência. Tem sido ao longo dos anos testada, confrontada com os fatos, e corroborada por evidências científicas acumuladas empiricamente.
3. CRIACIONISMO NÃO É CIÊNCIA, É CRENÇA
O entendimento de que “a vida tem sua origem em Deus, como criador supremo de todo universo e de todas as coisas que o compõe, como animais, plantas e o próprio homem” ocorre, segundo explica o próprio deputado Marco Feliciano, “por força da fé, dos costumes, das tradições e dos ensinos cristãos”. 
Os argumentos criacionistas são baseados em crenças acerca de uma entidade de fora do mundo natural.  Não pode ser investigado pela ciência, que somente investiga os fenômenos que ocorrem naturalmente. 
O criacionismo não é uma teoria científica, não satisfaz a condição essencial de poder ser testada, refutada, confrontada com a realidade por meio de observações e experiências, de tal modo que se possa verificar se suas afirmações são conformes aos fatos. Segundo Popper, “o critério de cientificidade de uma teoria reside na possibilidade de invalidá-la, de refutá-la ou ainda de testá-la”. Os sistemas que não podem ser refutados não são ciência, são dogmas.
O criacionismo é, portanto, uma crença, que envolve valores éticos e morais. É uma visão de mundo. Não é ciência, não pode ser testado, refutado ou comprovado.
4. A LIBERDADE DE CRENÇA É INVIOLÁVEL
O deputado alega na justificativa do projeto que “ensinar apenas a teoria do evolucionismo nas escolas, é violar a liberdade de crença, uma vez que a maioria das religiões brasileira acredita no criacionismo, defendido e ensinado na Igreja Católica, que ainda hoje é maioria no país, pelos evangélicos e demais denominações assemelhadas”. 
Ao longo do texto, o deputado insiste no argumento que “ensinar apenas o EVOLUCIONISMO nas escolas é ir contra a liberdade de crença de nosso povo, uma vez que a doutrina CRIACIONISTA é a predominante em todo o nosso país” e diz que “é possível harmonizar ensinos que contribuam ao desenvolvimento e amplitude da visão cósmica do conhecimento humano”.
Estas afirmações do deputado não procedem, pois como ressaltado anteriormente, a Constituição federal faculta às escolas a inserção do ensino religioso na sua grade curricular, não há nenhuma proibição para que se faça isto, e portanto, não há violação da liberdade de crença. Ao contrário, tornar obrigatório o ensino do criacionismo, doutrina cristã, nas escolas da rede pública e privada é que irá violar a liberdade de crença de muitos alunos que não compartilham desta mesma crença. Está claro na Constituição, que o ensino religioso é matéria facultativa, e a presença dos alunos nestas aulas dependerá de sua própria vontade ou de seu responsável.
5. NÃO HÁ CONFLITO ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO 
Não há conflito entre Ciência e religião, mas seus ensinos ocupam distintamente diferentes domínios. O primeiro ocupa o domínio científico, envolve a expertise profissional de universo empírico, que gera conhecimento crítico, que pode ser refutado, e, o segundo ocupa o domínio do conhecimento dogmático, com a busca por valores morais e éticos próprios e significado espiritual da vida. Porém, o fato de uma teoria não ser considerada científica não quer dizer que seja desprovida de significado ou importância.
A Ciência não tem como aceitar ou refutar as afirmações criacionistas. E, por isto, entendemos não ser adequado apresentar as crenças criacionistas em aulas de ciências, lado a lado do ensino sobre a evolução biológica. A natureza do conhecimento e os critérios de análise são diferentes, não podem ser confrontados. O ensino de conceitos não-científicos nas aulas de Ciência somente irá confundir os estudantes quanto aos processos, natureza e limites da Ciência.
O deputado conclui que o que se requer no PL não é a supressão da teoria evolucionista dos currículos escolares, mas a inclusão da doutrina criacionista, tendo em alta conta que esse é o ensino adotado pela maioria das religiões. Argumenta que vivemos numa sociedade democrática cujo direito fundamental se constitui na livre escolha, e que por isto cada um tenha o direito de escolher em que acreditar.
Entendemos que devido a natureza não científica da doutrina criacionista, essa deve ser incluída, a critério dos sistemas de ensino, no âmbito do ensino religioso, que conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/1996), regulamentarão os procedimentos para a definição de seus conteúdos, bem como estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.
Definitivamente, não há como inserir o criacionismo no conteúdo de disciplinas científicas, para que não prejudique o ensino científico de boa qualidade no Brasil.
Diante do exposto, senhores deputados, a SBPC solicita que o PL 8099/2014, bem como o PL 309/2011, no qual o primeiro está apensado, sejam rejeitados e arquivados, mantendo assim o princípio da laicidade e liberdade de crença garantidos pela nossa Constituição federal, bem como não comprometa o ensino das Ciências a nossos alunos.
Atenciosamente,
HELENA B. NADER
Presidente