SBPC envia carta aos senadores sobre os debates sobre o marco legal do acesso ao patrimônio genético

SBPC envia carta aos senadores da República lamentando o não envolvimento da comunidade científica na discussão do marco legal do acesso ao patrimônio genético.
São Paulo, 19 de março de 2015.
SBPC-043/Dir.
Aos Excelentíssimos Senhores
Senadores da República
Senado Federal
Excelentíssimos Senhores Senadores,
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) há 15 anos vem participando dos debates nacionais sobre o marco legal do acesso ao patrimônio genético, ao conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios. No entanto, no processo de discussão e elaboração da proposta que tramita nesta Casa (PLC 2/2015), lamentavelmente o governo federal não envolveu a comunidade científica. 
Assim, ao chegar ao Legislativo a proposta do Executivo, em regime de urgência constitucional, a SBPC solicitou à Presidente da República, em 17 de julho, a retirada da urgência para dar oportunidade aos grupos que não participaram dos debates no âmbito do Executivo, e que são diretamente afetados por esta legislação, de colocarem suas posições, receios, dúvidas e sugestões. Não tendo sido acatada nossa solicitação, encaminhamos ao Executivo e aos deputados nossas contribuições. No texto final, aprovado na Câmara, algumas de nossas recomendações foram incorporadas. Porém permanecem equívocos gravíssimos, que solicitamos a atenção dos senhores para que tais equívocos sejam corrigidos.
Por ser o País com maior biodiversidade do mundo,é fundamental que o Brasil tenha uma lei que se baseie na soberania nacional, na ética, no estímulo à geração de conhecimento e ao desenvolvimento de capacidades no País, no uso sustentável de componentes do patrimônio genético em produtos e processos, na proteção e o respeito aos direitos dos Povos Indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais em relação a seus conhecimentos associados aos recursos genéticos, na Ciência, Tecnologia e Inovação, e no desenvolvimento social e econômico.
E é neste sentido que gostaríamos de, inicialmente, reconhecer que o referido projeto de lei trouxe alguns avanços em relação à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico, retirando a necessidade de autorização prévia, o que burocratizava imensamentea realização de P&D no país.Outro ponto aperfeiçoado no projeto aprovado na Câmara foi a inserção da representação da sociedade civil no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) de forma plena, pleito antigo da comunidade científica. 
Em relação aos pontos que sugerimos alteração, o que nos preocupa sobremaneira, é o Art. 13 que estabelece que a pessoa jurídica estrangeira não associada à instituição nacional que quiser acessar o patrimônio genético brasileiro ou conhecimento tradicional associado poderá fazê-lo mediante autorização dada pelo CGEN ou Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Em nosso entendimento, toda pessoa jurídica estrangeira que quiser acessar componente do patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado terá, obrigatoriamente, que ser associada a uma ICT nacional e, em casos específicos, terá também que assinar o Acordo de Repartição de Benefícios como condição para obter uma autorização de acesso ao patrimônio genético brasileiro.
Atualmente, a legislação brasileira exige que todo pesquisador estrangeiro ou pessoa jurídica estrangeira que quer realizar pesquisa que envolva coleta de dados, materiais, espécimes biológicos e minerais, peças integrantes da cultura nativa e cultura popular, tenha que ter autorização do Ministério da Ciência, Tecnologiae Inovação (MCTI), que também deverá supervisionar a fiscalização e analisar os resultados de tal pesquisa.  Somente são autorizadas as atividades em que haja a co-participação e a corresponsabilidade de instituição brasileira de elevado e reconhecido conceito técnico-científico, no campo de pesquisa correlacionado com o trabalho a ser desenvolvido. A instituição brasileira tem que acompanhar e fiscalizar as atividades exercidas pelos estrangeiros. 
Esta exigência tem o intuito de proteger a soberania nacional e induzir a cooperação científica e tecnológica internacional, de modo a contribuir com o desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação no país.  É importante que tais pessoas jurídicas estrangeiras, que querem acessar o patrimônio genético nacional ou conhecimentos tradicionais associados, ao se associarem à instituição nacional de pesquisa e desenvolvimento, invistam no País e colaborem com a Ciência brasileira por meio de compartilhamento de conhecimento, desenvolvimento de pesquisas colaborativas, transferência de tecnologia, capacitação,co-titularidade de patentes e artigos científicos, entre outros.
Além disto, a obrigação da associação entre pessoa jurídica estrangeira e instituição nacional de pesquisa científica e tecnológica apoiará outras metas nacionais, comoa internacionalização da ciência e da educação, que vem contando com altos investimentos do governo federal, e a atualização e modernização do marco de ciência, tecnologia, inovação, que estimula a pesquisa científica, o desenvolvimento tecnológico e a inovação e a parceria entre empresas e instituições de pesquisa.
É importante salientar que outros países, incluindo países megadiversos da América Latina e países em desenvolvimento, como o Brasil, exigem que instituições estrangeiras tenham vínculo com instituição de pesquisa nacional, de modo a proteger interesses do país provedor de recursos genéticos.
Neste aspecto, solicitamos apoio às emendas 65, 70 e 71 apresentadas pela senadora Vanessa Grazziottin, que retomam a exigência de que a pessoa jurídica estrangeira se associe a uma instituição nacional de pesquisa científica e tecnológica.
Quanto aos direitos dos povos indígenas e conhecimentos tradicionais sobre seus conhecimentos tradicionais associados estão garantidos em vários dispositivos da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), em especial no Artigo 8(j), na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), convenções essas ratificadas pelo Brasil, e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
No PLC 2/2015 é necessário garantir o direito de receber repartição de benefícios oriundos do acesso ao conhecimento tradicional, como também garantir a participação do povo/comunidade na tomada de decisão quanto ao uso sustentável de seus conhecimentos tradicionais associados, como previsto no próprio projeto, no Art. 8o § 1o:
“O Estado reconhece o direito de populações indígenas, comunidades tradicionais e de agricultores tradicionais de participar da tomada de decisões, no âmbito nacional, sobre assuntos relacionados à conservação e ao uso sustentável de seus conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético do País…” 
e no Art. 10 incisos III e IV:
” As populações indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais que criam, desenvolvem, detém ou conservam conhecimento tradicional associado são garantidos os direitos de:

…………..

III – perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado, nos termos desta Lei;

IV – participar de processo de tomada de decisão sobre assuntos relacionados ao acesso a conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios decorrentes desse acesso, na forma de regulamento.”
        Entretanto, tais dispositivos não são considerados ao PLC tratar de repartição de benefícios. Em várias situações nas quais o conhecimento tradicional associado é acessado, previstas no Art. 17, o projeto isenta a repartição de benefícios sem consultar o povo/comunidade, contrariando os dispositivos do PLC acima mencionados. 
Em nosso entendimento, o Estado não pode ter a prerrogativa de isentar a repartição de benefícios advinda do acesso a conhecimentos tradicionais associados de origem identificável, já que não é titular de tais conhecimentos. Somente aos seus titulares caberia a decisão de abrir mão da repartição de benefícios a que têm direito, respeitando assim os direitos desses grupos reconhecidos, inclusive, pelos dispositivos do PLC 2/2015 anteriormente citados.
A repartição de benefícios também é restringida, quando o PLC estabelece que a mesma só incidirá sobre a comercialização de produto acabado ou material reprodutivo que tenha o componente do patrimônio genético ou o conhecimento tradicional associado como um dos elementos de agregação de valor do produto e que esteja na Lista de Classificação de Repartição de Benefícios, a ser definida pelo governo federal. Na prática, isto fere novamente o direito do povo/comunidade participar da tomada de decisão quanto à repartição de benefícios oriundos do acesso ao conhecimento tradicional associado. 
E, por último, gostaríamos de solicitar que seja incluído um dispositivo que reafirme a competência do órgão responsável pela biossegurança de organismos geneticamente modificados, conforme a Lei No11.105, de 24 de março de 2005, ou seja, no artigo 4 sugerimos incluir: e à matéria regulada pela Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, ou seja, o artigo 4 teria como redação final: “Esta lei não se aplica ao patrimônio genético humano e à matéria regulada pela Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005.”
Na certeza de queV. Exas.. irão corrigir as distorções aprovadas pela Câmara e aperfeiçoarão o projeto de lei, fazendo justiça aos povos/comunidades, garantindo seus direitos, e protegendo os interesses nacionais em relação ao desenvolvimento científico e tecnológico, sem abrir mão, no entanto, dos avanços alcançados até o momento, nos colocamos a inteira disposição para o que se fizer necessário.
Atenciosamente,
Helena B. Nader
Presidente