A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência lamenta profundamente o falecimento do físico e professor Ennio Candotti, um dos maiores nomes da luta pela ciência brasileira, na tarde dessa quarta-feira, 6 de dezembro. Nos anos 1970, Candotti foi uma importante figura contra as políticas nucleares do Governo Geisel (1974-1979). Por conta de seu ativismo político e científico, conheceu a SBPC. Foi a única pessoa a ser eleita quatro vezes para presidir a SBPC, com mandatos exercidos entre os anos de 1989 e 2007. Apaixonado pela Amazônia, sempre defendeu que o Brasil nunca será uma nação desenvolvida se não colocar a preservação ambiental como uma de suas prioridades.
“A perda de Ennio Candotti é um choque tremendo para todos nós. Ennio se destacou no começo dos anos 1990 quando, presidente pela primeira vez da SBPC, conduziu a comunidade científica na luta pelo impeachment de um presidente acusado de corrupção. Mais tarde, em 2003, foi novamente eleito para dirigir nossa sociedade. Seu papel na luta pela educação e divulgação científica foi notável, deixando como outro legado a revista Ciência Hoje e um sem -número de projetos e iniciativas que sempre prestigiou”, destaca o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro.
Diretora da SBPC, a professora emérita da UnB, Fernanda Sobral, destacou a trajetória política de Candotti. “As lembranças que tenho de Ennio são muitas, mas a sua lucidez e firmeza ao enfrentar todas as dificuldades nos caminhos da ciência e tecnologia sempre me impressionaram, acompanhadas de boas ideias. Não consigo imaginar uma reunião do Conselho da SBPC sem a presença de Ennio.”
“Cada sócio da SBPC, cada militante da ciência, acadêmico ou não, provavelmente teve alguma experiência marcante onde os nomes Ennio Candotti e SBPC se confundiram. E ambos se confundiram com a história das lutas nacionais em defesa da ciência, da soberania, da democracia, da educação, do meio ambiente e da inclusão social”, acrescenta a secretária-geral da SBPC, Cláudia Linhares Sales.
Nascido em 1942 na cidade de Roma, na Itália, Candotti e sua família vieram para o Brasil em 1952, por conta de uma crise econômica que atingiu o país na época. Sempre dedicado aos estudos, entrou na Universidade de São Paulo (USP), onde se formou em Física, em 1964. Um ano depois, conseguiu uma bolsa de estudos em um convênio entre a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e o governo da Itália e foi para a Università degli studi di Napoli. Voltaria ao Brasil anos mais tarde, iniciando sua trajetória em defesa da política científica brasileira.
“Eu voltei da Europa em 1974 e fui contratado pela Universidade do Rio de Janeiro em 1975, para atuar no seu Instituto de Física. Me envolvi na discussão do acordo nuclear e da política nuclear do governo militar de Geisel de maneira bastante crítica, e isso me deu a chance e a oportunidade de conversar com outros colegas da mesma área de física ou de outras áreas. Com isso, conheci a SBPC e me envolvi na construção da Secretaria Regional da entidade no Rio de Janeiro. Foi uma regional bastante articulada, que lutou pela redemocratização do sistema político brasileiro”, contou Candotti em junho deste ano, numa reportagem para o podcast O Som da Ciência, uma produção da SBPC.
No mesmo período, Candotti foi um dos nomes que defendeu uma mudança estrutural na SBPC. À época, a entidade mantinha entre seus membros essencialmente nomes das ciências médicas, da química, da física e da matemática. Os embates contra a ditadura militar mostraram que a própria SBPC precisava dar espaço para outros especialistas, principalmente das Ciências Humanas. “Nós entendemos que a SBPC reflete ou representa várias tendências, convicções e vários modos de encarar o papel da ciência na sociedade. E essa diversidade é muito importante”, disse.
Com a entrada dos cientistas sociais, a SBPC entendeu que sua luta não se resumia somente à estrutura científica do País, mas que deveria também refletir e combater problemas enraizados em nossa sociedade, como a fome, o desmatamento e a desigualdade social, valores que a entidade carrega até os dias de hoje.
Na 59ª Reunião Anual da SBPC, realizada na Universidade Federal do Pará (UFPA) em 2007, Candotti estava em seu último mandato como presidente da SBPC e sugeriu, em uma das mesas da programação do evento, que fosse construído um museu dentro da floresta amazônica. Sua ideia ganhou forma dois anos depois, e o pesquisador foi convidado a ser o diretor-geral do Musa, o Museu da Amazônia, cargo que ocupou até o dia de sua morte.
“Ele era um porta-voz da região Amazônica. Um construtor. Ennio vivia em outra dimensão da imaginação científica. Ele realizava sonhos, era a principal força proveniente da história da institucionalização da ciência no Brasil. Ele esteve à frente da luta pelo desenvolvimento da ciência brasileira. Esteve junto de outros cientistas na criação de instituições importantes para a ciência no Brasil, como, por exemplo, a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia”, detalha Marilene Corrêa da Silva Freitas, diretora da SBPC e professora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
“É impossível falar de ciência e desenvolvimento científico no Brasil sem lembrar de seu legado. Ele esteve à frente de grandes lutas no Brasil, como a luta universal pela democracia, direitos humanos, sempre com um diálogo consciente”, ressalta.
Para Freitas, seu legado será eternamente lembrado como exemplo de dedicação, comprometimento e amor pela ciência. “Nesses 13 anos de vida, o Musa se tornou a instituição mais visitada no Amazonas nos últimos anos graças ao trabalho e ao esforço visionário de Ennio e sua equipe. Ele reestruturou, no debate e no diálogo, o papel das instituições científicas no Amazonas, humanizou instituições e a sobrevivência da floresta. Ele também dialogou e debateu esse papel com instituições científicas do Brasil e da Panamazônia. Com a morte de Ennio, perdemos nosso interlocutor pela institucionalização da ciência na Amazônia.”
A paixão pela ciência e por um Brasil melhor por meio do desenvolvimento científico mobilizaram Candotti. “Ennio trabalhou até o último minuto pela ciência e pelo desenvolvimento científico brasileiro. Estive com ele na quinta-feira passada e ele estava trabalhando em um projeto que seria apresentado para o presidente Lula. Ele iria mostrar dados de que as instituições científicas desde o governo Lula e Dilma têm contribuído na formação de pesquisadores na região amazônica. Ele iria apresentar um projeto revolucionário – à exemplo do Mais Médicos – para não desperdiçar essa mão de obra especializada e acumulada na região, com a possibilidade de difundir a ciência produzida na própria Amazônia e de esta contribuir para o desenvolvimento brasileiro. Com isso, todas as instituições – dentre elas Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), Museu Goeldi e as universidades da região seriam fortalecidas.”
Personalidades políticas e científicas se despedem de Ennio Candotti
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva utilizou o seu perfil pessoal no Twitter para manifestar luto pela perda de Candotti. “Perdemos Ennio Candotti, físico ítalo-brasileiro e professor da Universidade Federal do Espírito Santo. Ennio foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência por quatro mandatos e mais recentemente era diretor do Museu da Amazônia. Sempre foi comprometido com o desenvolvimento científico brasileiro e a preservação do meio ambiente. Aos seus familiares, seus amigos e alunos minha solidariedade neste momento de tristeza e saudade.”
Helena Nader, presidente de honra da SBPC e presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), salientou o papel de Candotti nas lutas pela melhoria do País. “Mais que um revolucionário, ele contribuiu para a valorização da educação e da divulgação científica. Ennio também era um lutador pela democracia. Um amigo para sempre.”
Órgãos científicos nacionais também se manifestaram em luto pela perda de Candotti. Em nota, o Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) afirmou que a morte do especialista deixa uma lacuna irreparável na comunidade científica brasileira:
“O professor Ennio Candotti foi uma figura ímpar, reconhecida por seu conhecimento e contribuições notáveis para o avanço da ciência no Brasil. Sua atuação em prol das questões amazônicas foi incansável ao longo de 15 anos, sendo um defensor apaixonado pelo estudo e preservação da biodiversidade da região. Seu legado será eternamente lembrado como exemplo de dedicação, comprometimento e amor pela ciência. A comunidade científica perde um grande líder, mas suas ideias e realizações continuarão a inspirar futuras gerações de pesquisadores.”
A Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) reforçou que a Ciência brasileira está de luto. “Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência com o maior número de mandatos na entidade – como vice-presidente (1985-1987, 1987-1989, 2011-2013) e (2013-2015), e como presidente (1989-1991, 1991-1993, 2003-2005 e 2005-2007) Ennio Candotti recebeu, em 1998 o prêmio Kalinga de divulgação de Popularização da Ciência, dado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura por habilidades excepcionais na divulgação científica.”
Já a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) destacou a atuação de Candotti por diferentes instituições de ensino e pesquisa, como a Universidade de São Paulo, as Universidades Federais do Amazonas (Ufam), do Espírito Santo (Ufes) e do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade do Estado do Amazonas (UEA):
“Reconhecida personalidade da pesquisa e pós-graduação brasileiras, Candotti foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) por quatro vezes e, desde 1999, era presidente de honra da instituição. O físico fundou e foi o primeiro diretor do Museu da Amazônia (Musa), deixando um legado de dedicação à ciência do País.”
O corpo o cientista será velado no Musa. O velório será nesta sexta-feira, de 9 às 15h, e será aberto ao público.
Em solidariedade aos familiares e amigos de Ennio Candotti, a SBPC decretou luto oficial nesta quinta-feira, 7 de dezembro. Seu boletim diário, o JC Notícias, publicará amanhã, sexta-feira, uma edição especial em homenagem ao seu eterno presidente.
Rafael Revadam e Vivian Costa – Jornal da Ciência