SBPC se manifesta em audiência pública que discutiu novo manual do Ministério da Saúde sobre aborto

“O aborto é um procedimento de saúde como qualquer outro e, na medida em que as técnicas e os recursos modernos permitem sua realização por telessaúde, com respaldo da Lei e da Resolução do CFM, não cabe ao Ministério da Saúde a competência institucional para afastar a aplicação de lei federal”, disse Lia Zanotta Machado, professora emérita de Antropologia da UnB e representante da entidade no debate

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) participou da audiência pública que discutiu o manual “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”, um documento divulgado pelo Ministério da Saúde como um “guia para apoiar profissionais e serviços de saúde”. No debate, a entidade foi representada por Lia Zanotta Machado, professora emérita de Antropologia da Universidade de Brasília e membro do Conselho da SBPC, que citou que a SBPC solicitou o adiamento da audiência para que fosse possível ampliar as instituições convidadas para o debate e também pediu a revogação da cartilha.

Artistas, políticos e autoridades, entre eles, a Presidência e Diretoria da SBPC, se mobilizaram esta semana na campanha #CuidemDeNossasMeninas para pressionar o Ministério pela derrubada do novo manual, que propõe investigar criminalmente as vítimas de violência sexual que acessam o serviço de aborto legal. O documento ainda orienta que haja uma idade gestacional limite para o procedimento e cria confusão jurídica ao afirmar que “todo aborto é ilegal, salvo nos casos em que há excludente de ilicitude.”

Veja abaixo o pronunciamento da representante da SBPC na audiência na íntegra:

Manifestação da SBPC na Audiência Pública da Secretaria de Atenção Primária à Saúde sobre Documento “Atenção Técnica para Prevenção, Avalia/cão e Conduta nos casos de Abortamento”

Como conselheira da SBPC, eu Lia Zanotta Machado, Professora Emérita de Antropologia da Universidade de Brasília, indicada pelo Presidente da SBPC, o filósofo Professor Dr. Renato Janine venho Representar a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, instituição de longo histórico e de alta representatividade renomada e consagrada dos cientistas brasileiros das mais diversas áreas.

Nosso presidente assinou solicitação de adiamento dessa audiência para que fosse possível ampliar as instituições convidadas. Solicitou ainda em nome da SBPC a revogação dessa cartilha até que seja expurgada de seus equívocos.

Conceitos jurídicos mínimos foram descartados. Foi profundo nosso desalento diante do conteúdo da cartilha ‘Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos casos de abortamento’, agora elaborada pela área de atenção Primária do Ministério da Saúde.

Vejamos como Conceitos jurídicos mínimos foram descartados. Diz a cartilha que não há aborto legal. Mas sim há aborto legal sempre que não houver crime.

Somente há crime, se há fato típico, ilícito e culpável. O abortamento no caso de estupro, risco de morte da gestante e malformação fetal com impossibilidade de vida extrauterina não conforma tipicidade, ilicitude e culpabilidade e, portanto, o  abortamento é legal. Há sim aborto legal segundo o nosso Código penal de 1940 e segundo as decisões do STF de 2012.

Segundo o jurista conceituado, Juiz Dr. José Henrique Torres, professor da Escola Nacional de Magistratura, abro aspas: “O conceito analítico de crime é fato típico, ilícito e culpável. Assim para que haja crime, é imprescindível que haja tipicidade, ilicitude e culpabilidade. 1. Fato Típico (previsto em lei como crime_ ex: CP, arts 124,125 e 126, que tipificam os casos de ‘abortamento’; aborto é o produto do abortamento; mas já está consagrada a expressão ‘aborto’, para designar , juridicamente, a interrupção do processo gestacional antes de seu termo final, com ocisão fetal: no sentido jurídico-penal, o aborto pode acontecer a qualquer tempo antes do início do parto, ou seja, durante a vida intra-uterina; e  somente há crime, nos casos de abortamento, se houver DOLO; o abortamento culposo’ por negligência ou imprudência) pode ser uma conduta ilícita no âmbito civil e ético, mas não é crime, porque não é típico, porque não há previsão legal de aborto culposo: finalmente nos casos de MALFORMAÇÃO FETAL etc.. Como decidiu o STF com inviabilidade de vida extra-uterina (anencefalia etc), como decidiu o STF não há tipicidade, não há aborto, não há vida a ser tutelada pelo sistema penal, não há ocisão fetal, não há abortamento, não há crime por falta de tipicidade. 2. Fato Ilícito (ou antijurídico): se o crime é uma conduta típica e ilícita, as excludentes de ilicitude excluem o crime (legítima defesa, v.g.) se o fato é típico mas não é crime, o artigo 128 do CP contém duas excludentes legais de ilicitude: nessas duas hipóteses, o abortamento é lícito, não há ilicitude, não há crime! Essa questão está resolvida desde 1940 e está definida, consolidada pela jurisprudência e por todos os juristas sérios deste país! Essas duas hipóteses estão previstas na lei, e, por isso, são chamadas de ABORTO LEGAL. O exato seria dizer ‘abortamento lícito ou não criminoso’! Mas está correta e consagrada a expressão ‘aborto legal’ previsto em lei.” (Torres, texto escrito em 16 de junho de 2022).

O JUIZ Torres continua explicando que é necessário, para ser crime, que haja culpabilidade. E nesse caso, a imputabilidade dos menores de 18 anos fazem que não seja crime mas ato infracional e doentes mentais são inimputáveis.

De tudo o que foi discorrido, fica claro que é falsa a afirmação da Cartilha que não existe aborto legal.

Acrescento:

Nada no Código penal fala de necessidade de investigações policiais ou de autorização judicial para que ocorra o abortamento legal. Se a norma Técnica de 1999 do Ministério da Saúde apontava como norma a apresentação da ocorrência policial, a partir de 2005, a palavra da mulher foi considerada e aceita nos serviços de abortamento legal e nas Normas Técnicas do Ministério da Saúde. Na legislação penal brasileira, jamais houve a necessidade de solicitar ou realizar investigação policial, para que a mulher declarasse ter sido vítima de estupro. Mesmo a atual obrigatoriedade da notificação na área de Saúde sobre casos de estupro segue as regras do anonimato da vítima. (Os dados sobre a violência sexual devem ser remetidas às autoridades policiais de maneira anonimizada e consolidada (vide art. 3º da Lei nº 10.778/03, em conjunto com os arts. 14-D e 14 E da Portaria GM/MS nº 78/21).) As investigações policiais devem ser acionadas pelas vítimas caso queiram a punição do agressor e não para declarar que foram vítimas de estupro. Toda exigência e imposição sobre mulheres e meninas estupradas configura imposição, apos uma tragédia, de uma nova violação ou tortura.

Muitas outras são as afirmações equivocadas ou incorretas da Cartilha. Afirmamos abaixo o que está posto no documento enviado ao Ministério da Saúde encabeçado pela Clinica de Direito da UnB e pelo Instituto de Bioética da ANIS e assinado por várias e múltiplas instituições de todo o país, incluindo a SBPC. Citamos trechos dos itens críticos que o documento faz à versão divulgada online da Cartilha do Ministério da Saúde em junho de 2022.

  1. “O fato de que o aborto, mesmo subnotificado, configura a quarta maior causa de mortalidade materna já é preocupante por si só. Por isso, a pasta deve considerar que há mortes por hemorragia, hipertensão e infecção, as 3 maiores causas, como decorrências de abortos inseguros não identificados ou do agravamento de condições prévias em que a interrupção da gestação deveria ter sido oportunizada, conforme os dados do próprio Ministério da Saúde. Entendemos que “uma gestão comprometida com os direitos das mulheres deve estar comprometida com o enfrentamento de todas as causas de mortalidade materna e que não há justificativa de saúde pública para não priorizar o aborto”.
  2. A afirmação de que “O aborto realizado por médicos não é isento de riscos” (p. 7) é tendenciosa e está inserida de forma descontextualizada no documento. Sabe-se que nenhum procedimento de saúde é isento de riscos. No entanto, no caso específico do abortamento, as “Diretrizes sobre cuidados no aborto”, elaboradas e expedidas pela OMS em março deste ano, explicitamente afirmam que “o aborto é uma intervenção de saúde segura e não complexa que pode ser eficazmente gerida usando medicamentos ou um procedimento cirúrgico em vários contextos”. Neste sentido, as informações sobre os riscos do procedimento devem ser prestadas de forma fundamentada e
  3. No trecho “Dentre esses documentos, destaca-se o Pacto de São José da Costa Rica, o qual, em seu artigo 4º, alínea 1, prevê expressamente a proteção ao direito à vida desde a concepção. O Pacto de São José da Costa Rica foi internalizado em 1992, por meio do Decreto Presidencial nº 678/1992” (p.12). O Ministério da Saúde omitiu a redação correta do dispositivo do tratado de direitos humanos, que dispõe que “esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção”. O emprego deste aposto – “em geral” – decorre justamente da necessidade de esclarecimento de que, na maioria dos casos, protege-se o direito à vida desde a concepção, mas que, em condições excepcionais, tais quais as que conduzem à interrupção legal da gravidez, o dispositivo não se
  4. Não cabe dizer que não se admite qualquer interpretação da ADPF 54 no sentido de ampliar as possibilidades de aborto, pois isso implicaria um tratamento jurídico diferenciado para a mesma situação (inviabilidade extrauterina).
  5. É inverídico afirmar que “As condições que realmente colocam em risco a vida da mulher que justifiquem um aborto são poucas, não cabendo um alargamento sem motivos técnicos” (p. 15)”. Todas as hipóteses de aborto legal devem ser acolhidas porque implicam a preservação da saúde da pessoa que gesta. A informação correta é que uma importante proporção das mortes maternas resultam de condições diagnosticáveis no início da gravidez, diante das quais poderia ter sido ofertado o aborto como forma de salvar a vida da
  6. “Embrião”, “feto” e “pessoa humana” são conceitos distintos e cada qual têm diferentes níveis de proteção legal. O chamado nascituro recebe amparo patrimonial fictício, em suma, apenas para garantir a sucessão de bens e os alimentos gravídicos, o que não quer dizer que detenha personalidade civil, pois esta existe apenas a partir do nascimento com vida (art. 2º, Código Civil). Assim, na lei brasileira, há uma proteção gradual conferida ao feto, o que não é o mesmo que reconhecê-lo como uma pessoa titular de direitos fundamentais. Como já reconheceu o STF, no julgamento da ADI 3510, em 2008: “o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana”.
  7. É falsa a informação contida na cartilha de que “Tal obrigatoriedade [Comunicar o fato à autoridade policial responsável] decorre da lei e não fere o direito à intimidade da paciente, visto que se trata de matéria de ordem pública, ou seja, constitui justa causa a comunicação à autoridade policial do fato ocorrido, cumprindo a disposição do art. 5º, X, da Constituição Federal e do art. 154 do Código ” (p. 20). Ao contrário, a exposição dos dados da vítima configura o crime de violação ao sigilo profissional, tipificado no art. 154 do Código Penal e é uma infração ética segundo o artigo 74 do Código de Ética Médica.
  8. objeção da consciência não é um direito absoluto, mas, sim, uma exceção. O médico pode invocá-la, excetuadas a) as situações de ausência de outro médico, b) em caso de urgência ou emergência, ou c) quando sua recusa puder trazer danos à saúde do paciente (Código de Ética Médica, Cap. I, VII). Nessas hipóteses, a objeção de consciência não pode se sobrepor ao dever de cuidado médico, sob pena de, em caso de omissão, sofrer responsabilização civil e criminal pelas consequências advindas da omissão, pois podia e devia agir para evitar tais resultados (Código Penal, 13, §2º).
  9. O uso da telemedicina foi expressamente autorizado pela Lei nº 13.989/2020, em caráter emergencial durante a  crise  ocasionada  pela pandemia da COVID-19, e pela Portaria nº 467/2020, sendo regulamentadpela  GM/MS  nº  348  de  2  de  Junho  de  2022  e  pela  Resolução  CFM  nº 2.314/2022. O aborto é um procedimento de saúde como qualquer outro e, na medida em que as técnicas e os recursos modernos permitem sua realização por telessaúde, com respaldo da Lei e da Resolução do CFM, não cabe ao Ministério da Saúde a competência institucional para afastar a aplicação de lei federal.

Brasília, 27 de junho de 2022

Lia Zanotta Machado, Representante da SBPC.

Veja o documento em PDF.

Jornal da Ciência