Leia a nota na íntegra:
Sobre a Lei do Ventre Livre
Ao ensejo dos 150 anos da assinatura da Lei dita do Ventre Livre, a SBPC manifesta a convicção de que os fatos referentes à escravatura e à abolição sejam relatados e ensinados, especialmente na educação básica, com absoluto respeito à verdade factual e sem a constituição de mitos falsos, que minimizam a violência da escravidão ou apresentam a sua extinção como dádiva dos poderosos, e não como conquista dos povos escravizados.
Com efeito, não só o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, como as leis do Ventre Livre e dos Sexagenários, longe de serem humanitárias, incluíam dispositivos que obrigavam a criança nascida “livre” a trabalhar até os 21 anos de idade como se escrava fosse, ou os pouquíssimos cativos que chegassem a completar 60 anos – dado que as condições cruéis da escravidão matavam a grande maioria deles muito antes dessa idade – a servir ainda por vários anos, antes de se efetivar sua libertação.
Cumpre também lembrar que a própria abolição, decretada em maio de 1888, ocorreu em meio a discussões sobre possível indenização aos proprietários de seres humanos, em vez, como seria ético e digno, de indenização aos escravizados, vítimas que foram ao longo de suas vidas de uma violência inadmissível mesmo pelos padrões da época.
Além disso, nos últimos anos, estudos historiográficos sérios têm mostrado o impacto e importância das revoltas de cativos contra sua condição, ao longo de todo o século XIX, sendo que a Lei Áurea pode ter sido mais o reconhecimento, pelas elites imperiais e escravagistas, de que não tinham meios de conter o movimento revolucionário que crescia pelo Brasil, do que uma concessão generosa e unilateral. Urge conhecer melhor as lutas dos heróis que se bateram contra a escravidão, bem como reconhecê-las com as merecidas homenagens. Conhecer e reconhecer o heroísmo da luta pela liberdade devem ser prioridades das agências de fomento e dos órgãos de Estado.
Finalmente, neste momento em que o Haiti sofre uma pobreza devastadora, convém lembrar que ao longo de todo o século XIX a primeira República de maioria negra do mundo foi exposta como ameaça ao sistema escravagista, sendo boicotada e prejudicada de todas as formas pela ousadia que consistiu em proclamar o fim da escravidão naquela que era então a mais rica ilha das Antilhas. As crises de que padece a República do Haiti são sequelas, ainda que remotas, do embargo e boicote sofrido pela segunda nação das Américas a se tornar independente, o que por sinal é minimizado em muitos de nossos livros de História.
Por esta razão, ao sabermos que filhos brasileiros de haitianos estão entre os deportados dos Estados Unidos nestes últimos dias, exortamos o governo de nosso País a receber essas famílias e dar-lhes o acolhimento que merecem, bem como manifestamos ao governo norte-americano a convicção de que a tragédia humanitária que assola a referida República requer solidariedade, e não expulsão. A escravatura é um crime tão horrível contra a humanidade que suas chagas perduram mesmo depois de vencidos séculos de sua abolição.
A manifestação foi enviada aos presidentes do CNPq, Capes, Finep, Confap, Fapesp, e Andifes; ao Governo do Estado de SP, à Prefeitura de São Paulo e para as Embaixadas do Haiti e dos Estados Unidos no Brasil.
SBPC