Após enviar ao Congresso Nacional um projeto de lei para permitir o confisco dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), o Ministério da Economia (ME) veio a público declarar que o bloqueio de verbas não fere a Lei Complementar n° 177, de 2021, ao contrário do que tem denunciado a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e especialistas em orçamento da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. O argumento usado pela equipe do ministro Paulo Guedes, no entanto, não se sustenta a uma análise mais detida.
De acordo com nota divulgada pela TV Globo, a equipe do ME teria argumentado que a LCP n° 177/2021 apenas impede o contingenciamento de recursos do FNDCT ou a alocação da verba em Reserva de Contingência. E que o bloqueio de R$ 2,5 bilhões no fundo, anunciado pelo governo federal no mês passado, trata-se de medida diversa, que não fere a lei. Esta não é a visão exposta na nota conjunta das consultorias do Congresso Nacional sobre o Projeto de Lei do Congresso (PLN) n° 17/2022, que pretende consolidar na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) o cancelamento dos recursos da ciência.
“A Lei nº 11.540/2007 (Lei do FNDCT, alterada pela LCP 177/21) não admite a adoção de qualquer procedimento que vise impedir a execução integral das despesas autorizadas no âmbito do FNDCT. Além disso, a lei de diretrizes orçamentárias não tem o condão de alterar essa ‘obrigatoriedade de execução’, uma vez que se encontra determinada na lei específica do referido fundo”, afirmam os consultores na nota técnica. Os técnicos interpretam ainda que os recursos do FNDCT sequer deveriam ser contados como despesas discricionárias – aquelas passíveis de controle no fluxo de pagamento por parte do ME –, não podendo nem mesmo serem cortadas para fins de cumprimento do Teto de Gastos. Adequar o orçamento ao Teto de Gastos foi a justificativa dada para a realização do bloqueio em junho.
Segundo o ME, conforme publicado pelo portal G1, “tais restrições apontadas pela consultoria não se confundem com o cancelamento de recursos para fins da abertura de créditos adicionais, que são necessários para atender necessidades de execução de políticas públicas”. Ocorre que o PLN 17/2022 vai ainda mais longe do que simplesmente cortar créditos adicionais, como informa o ME. O projeto pretende validar o bloqueio de recursos do FNDCT em 2022 sem nenhum limite, podendo no extremo cancelar todas as programações do fundo de fomento da ciência. A equipe econômica também aproveita a proposta para livrar-se da obrigação legal de alocar, no máximo, 50% dos recursos do fundo em créditos reembolsáveis destinados a empréstimos para empresas. Ou seja, se for do desejo da equipe econômica, recursos podem sair das universidades, institutos e demais instituições públicas de pesquisa e serem realocados para aumentar a parcela de crédito, desmontando o sistema público de ciência, tecnologia e inovação.
No comunicado, o ME alega que o PLN 17/2022 traz “segurança jurídica”. Isto é verdade do ponto de vista da equipe econômica justamente por conta da precariedade da manobra realizada pelo ME para burlar a LCP 177/2021. A equipe econômica tem se amparado em um subterfúgio linguístico para driblar a lei em vigor, argumentando que bloqueio não é contingenciamento. Há diferenças sutis entre os dois mecanismos, mas a questão concreta é se o bloqueio infringe ou não a lei complementar em vigor. E a interpretação técnica, manifestada pela nota da consultoria do Congresso, é que a lei não está sendo respeitada. O risco da ilegalidade é tão claro que o governo enviou o PLN 17/2022 para “legalizar” o bloqueio.
O que diz, afinal, a LCP 177/2021 sobre o controle dos recursos do FNDCT? “É vedada a imposição de quaisquer limites à execução da programação financeira relativa às fontes vinculadas ao FNDCT, exceto quando houver frustração na arrecadação das receitas correspondentes.” Este é um dos impedimentos declarados na lei para proteger os recursos do FNDCT. E, como pode-se verificar, o legislador diz “quaisquer limites à execução”. O bloqueio realizado pelo ME permite o empenho dos recursos do fundo, ao contrário do contingenciamento, que cancela as verbas já nesta etapa. Mas depois declara que não pagará a totalidade do recurso autorizado para empenho. E isso é claramente limitar a execução da programação financeira, uma vez que a execução é composta por três etapas: empenho, liquidação e pagamento. Se qualquer uma dessas etapas é restrita, está configurado o limite na execução.
A SBPC foi a primeira a denunciar, em nota pública, a manobra contida no PLN do governo para esvaziar os recursos do FNDCT, burlando a legislação em vigor. O Presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, declarou que “é absurdo que o Ministério da Economia esteja usando de artifícios e subterfúgios, inclusive troca de palavras, para cortar verbas absolutamente necessárias para que a ciência dê sua importante contribuição para um Brasil próspero e justo.”
O bloqueio de recursos coloca todo o Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI) em risco e a comunidade científica tem se unido para proteger os recursos do setor e cobrado dos parlamentares que rejeitem qualquer proposta que fira a LCP 177/2021, aprovada por ampla maioria pelo Congresso Nacional no ano passado, no espírito de proteger a ciência nacional.
Mariana Mazza – Especial para o JC