“Sem desenvolvimento científico, nossas oportunidades serão perdidas”, diz presidente da SBPC

À frente da SBPC pelos próximos dois anos, o filósofo Renato Janine Ribeiro acredita que uma das grandes tarefas da instituição é convencer a sociedade brasileira de que, sem ciência, o futuro do País é limitado
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Foto: UFSCar

Desde que tomou posse como presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 23 de julho, Renato Janine Ribeiro tem deixado claro que vai manter as lutas da comunidade científica contra os ataques de um governo negacionista da ciência.

Filósofo, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da Educação, Ribeiro foi eleito em 22 de junho com 1.205 votos (63% do total), em uma eleição que contou com a adesão de 60% dos sócios da entidade, o maior índice dos últimos dez anos.

Mas, além das batalhas por orçamento, ele também quer encontrar caminhos de soluções e diálogos para fortalecer a democracia e o desenvolvimento econômico que, na visão dele, passa necessariamente pelo desenvolvimento científico. Para Ribeiro, o Brasil não pode estar fora de nenhuma pesquisa de ponta ou área cientifica importante e tem que ser protagonista em algumas dessas áreas.

“Estou muito orgulhoso de estar na Presidência da SBPC, uma sociedade que tem uma história notável, uma equipe de funcionários fabulosa e uma lista de serviços prestados ao Brasil impressionante”, declarou em entrevista à nova edição ao Jornal da Ciência que subiu hoje para o site e pode ser baixada aqui. Confira a conversa na íntegra a seguir: 

Jornal da Ciência – Como o senhor vê o papel de entidades científicas como a SBPC no mundo hoje?

Renato Janine Ribeiro – As sociedades científicas, assim como os pesquisadores, têm um papel decisivo na gestação de políticas. Isso vale tanto em países democráticos, como a União Europeia, como na China, país que faz uso muito intenso da ciência no seu desenvolvimento econômico e social. Penso que uma das coisas que devemos fazer, especialmente dentro da SBPC, é convencer a sociedade brasileira de que sem desenvolvimento científico teremos muito pouco futuro, nossas oportunidades serão perdidas.

JC – Com que argumentos?

RJR – O Brasil tem uma biodiversidade gigantesca, talvez a maior do mundo na Amazônia, e essa floresta tem que ser preservada, mas ela também tem que ser alvo de pesquisa científica. Sem a pesquisa científica, as potencialidades dela ficam limitadas. Da mesma forma, temos um povo de muita criatividade, como atestamos nas artes e na cultura, mas sem a educação, inclusive a cientifica, essas potencialidades ficam limitadas. Nesse sentido, acho que o papel de uma sociedade como a SBPC em especial é o de fazer ver, tanto à sociedade, quanto aos gestores públicos, a importância do conhecimento rigoroso na definição de políticas que melhorem a vida das pessoas.

JC – O sr. falou no seu discurso de posse e tem falado em outras entrevistas, de uma ciência para a paz. Essa ciência para a paz está realizando seus objetivos hoje?

RJR – No que depende dos cientistas, em larga medida. Você tem pesquisas cientificas nas áreas vinculadas à vida que têm valorizado muito o meio ambiente e sua importância para a saúde das pessoas. O aumento da expectativa de vida, que praticamente dobrou em cem anos no mundo todo, é fruto tanto de avanços na medicina, quanto de campanhas na área de saúde pública. Por outro lado, as ciências humanas têm mostrado a importância da inclusão social, da redução da miséria, de programas de políticas públicas que promovam igualdade de oportunidades para as pessoas. Também tem apontado as causas da violência, um tema que preocupa muito hoje. Tudo isso tem conduzido para uma situação potencialmente de maior paz.

JC – Como as ciências humanas têm contribuído na questão da violência?

RJR – São duas as indicações importantes: primeira, é o fato de que a nossa sociedade é menos violenta que as do passado, ao contrário do que muitas pessoas pensam. Realmente as sociedades do passado eram caracterizadas por muito mais violência, foi se reduzindo nos últimos séculos, apesar da percepção de muita gente de que houve um aumento. Um primeiro ponto é desfazer esse mito do aumento da violência. A segunda contribuição é mostrar as causas da violência: a exclusão social, que é um fenômeno que acaba fazendo uma parte da população recorrer ao crime como única forma de sobrevivência, passando pela articulação de quadrilhas e gangues como as de narcotráfico e, no Brasil, as milícias, que também tem sido tema de pesquisas importantes nas ciências humanas. Você tem todo um conjunto de ciências para a paz que compete com a ciência bélica, aquela financiada militarmente, que foi a que prevaleceu durante boa parte da história e que tem na bomba atômica talvez seu exemplo mais claro.

JC – O que marca a ciência bélica hoje?

RJR – Mesmo algumas invenções que hoje são usadas para a paz foram concebidas para a guerra e são usadas assim, veja o caso dos drones. Na recente guerra entre Armênia e Azerbaijão, este país utilizou ataques de drones montados por Israel e a Turquia, o que permitiu que vencessem uma guerra quase fulminante contra a Armênia, que por sua vez havia derrotado o Azerbaijão em uma guerra quase trinta anos atrás. Então, uma invenção que pode ter um papel pacífico como o drone, também pode ter um papel perigoso, também pode ser usado para vigilância. Nas recentes manifestações na Avenida Paulista (em São Paulo, capital), havia drones o tempo todo, tanto para reportagens, quanto para a polícia. São duas questões um pouco diferentes. De um lado, você tem invenções científicas que podem ser usadas para o bem e para o mal, é uma questão ética. De outro lado, têm pesquisas que já são focadas em uma direção. Uma arma está focada na violência, que pode até ser bem usada, contra um criminoso ou contra um ditador. Mas uma arma é feita para matar. De outro lado, uma vacina é feita para salvar vidas. Então temos certas pesquisas que já têm foco para paz ou para a guerra, e outras que podem ser utilizadas em um caso e outro.

JC – Já que entramos na questão da ética, com tantos embates que se tem hoje envolvendo mercado, política, interesses diversos, como a ciência pode de fato se tornar um bem social ao alcance de todos, que promova um salto na qualidade de vida das pessoas de forma mais igualitária? 

RJR – Isso depende das escolhas políticas que as sociedades fazem. Se fizer uma escolha política que aposta na inclusão social, na igualdade pelo menos de oportunidades, a ciência vai ser de grande ajuda. Vou dar um exemplo terrível: o ultrassom é algo que contribui muito para a detecção de doenças, bem como para o tratamento delas, então é algo bastante positivo. Mas em certas sociedades machistas da Ásia, o ultrassom foi usado para detectar o sexo do bebê e para que ele fosse abortado se fosse do sexo feminino. Houve praticamente abortos em massa de fetos nessas sociedades que valorizam mais o homem que a mulher. E isso foi graças a um avanço científico.

JC – Quer dizer, na verdade dependemos de políticas públicas que promovam a igualdade. 

RJR – Sim, de políticas públicas que promovam a igualdade, justiça, enfim, valores éticos que hoje estão em grande parte consubstanciados nas declarações de Direitos Humanos, não só de 1948, mas depois, os da criança e adolescente, direitos iguais para os gêneros, combate ao racismo, direito à habitação. Se você não tiver políticas públicas para isso, a ciência sozinha não pode fazer nada, a ciência não faz milagre. Ela pode indicar os melhores meios, mas quem vai fazer isso é uma escolha social. Uma sociedade tem que saber fazer as escolhas dela. Por exemplo, se você for para as ciências sociais, a grande maioria dos pesquisadores que trabalha com miséria converge no sentido de que é preciso acabar com a miséria com políticas públicas.

JC – Esses estudos orientam os governos?

RJR – Há uma diversidade de políticas públicas. O bolsa família, por exemplo, uma política que foi muito prestigiada, valorizada. Estudos mostraram que é o melhor investimento porque o retorno é muito elevado, até mesmo em termos de impostos. Agora, tem lugares que preferem favorecer o empreendedorismo individual, é uma solução mais liberal. São opções políticas, é importante que essas opções tenham conhecimento por trás. Se você tiver conhecimento, um governo liberal pode dizer que vai favorecer que todos os pobres sejam empreendedores, um governo de foco mais social vai favorecer outros tipos de relação de trabalho, garantir emprego, partir para economia solidária, mas em todos os casos é importante ter base científica. O que a ciência social nos ensina é que a miséria é um mal, tem que acabar com ela.

JC – O que explica, na sua visão, esse movimento mundial de retrocesso, de negacionismo do conhecimento cientifico, de posições da ‘idade média’?

 

RJR – A nossa sociedade é muito marcada pela economia e pelo desejo de consumo. Tivemos um período de expansão da democracia no mundo, os 30 anos gloriosos, entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a crise do petróleo, em 1973. Foram anos em que os países ricos foram em uma vertente social democrata, mesmo sem governos socialdemocratas. Governos de direita, como o dos Republicanos nos EUA, o (Charles) De Gaulle na França, foram em direção ao bem-estar social. Depois houve 30 anos gloriosos para os países em desenvolvimento, o restante do mundo, com o fim das ditaduras no Segundo Mundo, dos países comunistas, na América Latina, e em outras partes do Terceiro Mundo capitalista. O fim das ditaduras veio junto à melhora das condições de vida, que está ligada com a democracia. Sem democracia, dificilmente as condições de vida das pessoas teriam melhorado.

JC – Foi o caso no Brasil?

RJR – Se você olha os dados, por exemplo, em 1985, no fim da ditadura, mais de 80% dos municípios brasileiros tinham um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) muito ruim. Em 2010 era menos de 1% dos municípios. Então, 25 anos de democracia, de 1985 a 2010, tiraram o Brasil do IDH ruim. Nosso IDH médio passou a ser alto, às vezes muito alto, dependendo do município ou estado. Pós-2008, tem uma crise econômica brutal que vai repercutir nos países em velocidades diferentes. Quando chegou aqui, o Brasil se poupou e se protegeu da crise até 2014, quando ela chegou com força. Não à toa que a nossa crise começa aí: a crise política, a queda de arrecadação, a queda da economia.

JC – Como essa crise afetou a democracia na sua visão?

RJR – Com uma crise econômica, uma sociedade que associa democracia a consumo, que deseja consumir e ter acesso a bens de consumo e esse acesso não aumenta, fica descontente com o governo. Quando cai, fica mais descontente ainda. Entendo assim a “grande reversão”, título de um livro sobre isso do qual eu participei, uma obra coletiva. Essa grande reversão está muito ligada a uma visão de mundo que valoriza muito o consumo e que mensura a satisfação das pessoas pelo nível de vida delas. Quando há uma melhora do nível de vida, elege ou reelege um governo. Quando tem uma piora, há um descontentamento. No Brasil, depois de quatro anos de piora do nível de vida, tivemos a vitória do PT (Partido dos Trabalhadores) e, em 2015-2016, quando a economia também estava ruim, vem o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Há uma certa correlação entre essas coisas.

JC – A associação de democracia a consumo aparece em vários países, qual a diferença no caso brasileiro?

RJR – Soma-se a isso, no caso do Brasil, uma falta de educação com falta de cultura política. O Brasil não é uma sociedade que está acostumada a um princípio básico da política que é a legitimidade, tanto de uma esquerda, quanto de uma direita, desde que democráticas. O Brasil pensa a política a partir de uma moral tradicional: tem o bem e o mal, o honesto e o ladrão. As pessoas quando vão votar, na hora de escolher alguém, discutem muito se é honesto ou desonesto, a corrupção ou não da pessoa, quando ser honesto não é mais que uma obrigação. Você não tem que escolher um político por ele ser honesto ou desonesto, mas pela política que ele propõe. Mas a discussão política brasileira não passa por aí, e em muitos países também. Veja, no Chile, (o general Augusto) Pinochet foi responsável pela morte de milhares de pessoas, mas a direita chilena só se desencantou com ele quando soube que ele tinha roubado dinheiro. Ou seja, assassinar, tudo bem. Roubar dinheiro público, não. Quer dizer, a vida vale menos que o dinheiro?

JC – E no Brasil?

RJR – Aqui o liberalismo é fraco, não há um partido liberal que defenda liberdade de oportunidades. No liberalismo, cada pessoa tem suas diferenças, você tem que respeitar todas as diferenças e retirar tudo o que limita o florescimento da capacidade de cada um. Então, desse ponto de vista, o liberalismo não é apenas tirar o poder do estado, também é tirar o preconceito racial, de orientação sexual e o próprio poder da igreja e a prepotência dos pais. No Brasil, o liberalismo é apontado como se fosse uma espécie de estado de guerra, em que você tira o estado e é cada um por si. E liberalismo não é isso. Então, há uma discussão política muito limitada no Brasil e isso torna muito difícil fazer escolhas. E não é só no Brasil.

JC – Quanto esse cenário que o Sr. descreveu pode se constituir em uma oportunidade para se refletir sobre feridas antigas do universo cientifico como elitismo, a ‘torre de marfim’, o acesso restrito ao conhecimento?

RJR – Penso que é o momento, mas estamos nesse caminho há algum tempo. Os cientistas sabem faz tempo que se a ciência não se difundir pela sociedade, vai ter alcance limitado. Os melhores cientistas são pessoas muito preocupadas com a educação e a divulgação científica. Eles constantemente participam de iniciativas nessa direção, escrevem livros de divulgação, mesmo nas ciências de mais difícil compreensão. E nesse ponto a ideia da ‘torre de marfim’ não prevalece mais. Mas claro que você tem especialidades, qualificação: ciência não é questão de opinião, é disputa sobre a verdade. Pode haver uma polemica científica em torno da criação do universo, se foi por meio do ‘big bang’ ou outra forma. Agora, a ideia de que o universo foi criado por Deus não é científico, uma polemica nesse campo é extra cientifica.

JC – Como lidar com o avanço dessas polêmicas extra científicas?

RJR – Um dos pontos cruciais que me parecem importantes é garantir o letramento científico da população. Não apenas a alfabetização, de saber ler e escrever e as operações matemáticas básicas, mas também ter um conhecimento das bases científicas, a química, a física e a biologia, isso tem que se difundir mais. Onde isso foi conseguido bastante, foi na medicina. Muitas descobertas e dicas médicas se tornaram correntes. Gordura e açúcar, embora tornem a comida mais saborosa, são ruins para a saúde, muita gente hoje sabe disso. Quando começou a onda de comida vegetariana algumas décadas atrás, era uma comida muito insossa, mas houve um avanço significativo, a gastronomia toda melhorou, vegetariana e não vegetariana. Está ligado certamente a descobertas cientificas, tanto de que gordura e açúcar fazem mal para a saúde, como também sobre o desgaste que a criação de gado causa para o meio ambiente. É necessário muito mais água, terrenos e nutrientes de solo para produzir um quilo de carne do que o equivalente disso em proteínas vegetais. Então, são várias ciências contribuindo para melhorar a saúde dos seres humanos e a vida no planeta.

JC –  E nesse caso a divulgação da ciência foi bastante eficiente, houve muita divulgação a respeito.

RJR – Tem sido mesmo quando a pessoa não cita a ciência. Quando alguém diz ‘evite açúcar e gordura’, está se baseando na ciência. Agora é curioso que, de todas as áreas científicas, a que mais chega à sociedade é a da saúde, a que tem melhor divulgação, a mais bem acolhida. São as duas coisas: tem a oferta de divulgação e uma demanda. Sempre comento que o (médico) Dráuzio Varela é pioneiro, mas tem muito mais gente divulgando. Isso traz um resultado conexo, que é a divulgação de fake news. Nos EUA foi divulgado que quem encabeça a lista dos doze maiores propagadores de fake news sobre a covid-19 é um osteopata da Florida, Joseph Mercola. Esse homem nem é especialista nisso, mas divulga, diz que faz alimentação natural, dissemina mentiras. Mas por que ele tem espaço? Porque há uma demanda por informações sobre vida saudável, então ele usa todo um discurso que tem um público grande interessado.

JC – O Sr. tem dito nas suas entrevistas que acha que a gente tem que ter recursos para a ciência, mas não para fazer mais do mesmo, e sim para fazer melhor. Que áreas da ciência o Sr. acha que precisam seguir mais nesse rumo?

RJR – Para mim é difícil falar em todas as áreas da ciência. Todo mundo sabe que algumas áreas têm pesquisa de ponta, como nanotecnologia e outras. Os INCTs (Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia), assim como os Cepids (Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão), da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), procuraram fazer essa sistematização. Mas posso dizer que um país como o Brasil tem que ter duas políticas. Primeiro, não pode estar fora de nenhuma pesquisa de ponta ou de área cientifica importante. Segundo, podemos ser protagonistas em algumas.

JC – Em quais podemos ser protagonistas?

RJR – Temos que definir onde vamos ser protagonistas e onde vamos ser participantes. Para ser participante, você aceita que existe liderança de laboratórios internacionais dos quais você participa em posição que não é de liderança, até porque nem sempre você tem os equipamentos necessários para isso. Mas se mantém atualizado e se desenvolve para até, eventualmente, depois disputar o protagonismo. Agora, um país como o Brasil tem que definir uma relação de pontos onde quer ser protagonista, e alguns desses pontos estão dados pela nossa natureza. Por exemplo, a biodiversidade amazônica: remédios, produtos químicos.

JC – Há muito o que fazer na área de saúde…

RJR – Sim, mas não é só para a saúde. Outra coisa importante que o Brasil tem obrigação de fazer é a detecção de potenciais vírus que venham do mundo selvagem. A aids, 40 anos atrás e a covid-19 agora são dois casos de transmissão de vírus que estavam na natureza e chegaram ao ser humano por operar uma gigantesca devastação. É preciso ter prudência no trato disso, ter protocolos, ter cuidados, e esses cuidados também incumbem à ciência. E o Brasil, como guardião da floresta amazônica, tem um papel, mas eu não saberia dizer os lugares em que o Brasil tem que ser protagonista. No caso da área de humanas, entendo que os estudos sobre o autoritarismo, das mais diversas formas, são um ponto que o Brasil deveria ser protagonista, porque temos uma vasta experiência, temos muito a estudar e a ensinar.

JC – A área de tecnologia é uma das que mais demandam profissionais qualificados, em programação, em desenvolvimento, tem milhares de vagas abertas que as pessoas não conseguem preencher, principalmente no Brasil, por falta de profissionais bem qualificados. Como o Sr. vê isso e se há alguma proposta com a qual a SBPC possa contribuir para fazer o link entre aa necessidade do mercado e a oferta de treinamento de pessoas para essa demanda?

RJR – Temos vários níveis de tecnologia, desde os mais desenvolvidos, de doutores – lembro quando estava na Capes se dizia que a Petrobras precisava de um grande número de doutores em engenharia -, até os mais simples, que o Pronatec procurava atender a partir dos cursos de 160 horas de duração mínima. Penso que o Pronatec foi uma grande iniciativa, no sentido de qualificar a mão de obra brasileira para as pessoas melhorarem salários atendendo às necessidades da economia. Foi um projeto que foi infelizmente liquidado pelos governos que vieram depois da Dilma e que mereceriam uma volta. Agora, há níveis muito diferentes e o problema é que o Brasil, toda vez que entra em uma baixa de crescimento econômico se detecta que existe uma carência de mão de obra qualificada.

JC – Como lidar com esse descompasso?

RJR – Precisamos preparar essa mão de obra previamente, quer dizer, o desenvolvimento econômico não pode ser pensado simplesmente como uma questão de juros, investimentos, auxilio do Estado, livre concorrência. Tem que ser pensado com a qualificação pela educação da mão de obra, em todos os níveis. E penso também que é muito importante na questão da tecnologia, pensar quem se beneficia com ela, é uma questão que fica às vezes meio ausente do debate.

JC – Como?

RJR – Quando você, por exemplo, mecaniza a agricultura, desemprega gente. E essas pessoas são forçadas a um êxodo rural em direção às cidades onde elas vão requerer ruas, casas, água, esgoto, luz, internet, telefone. Há uma conta que tem que ser paga, e temos que examinar isso em termos sociais de uma maneira mais abrangente. Temos que pensar em que medida a tecnologia, quando aprimora a economia, beneficia mais ou menos determinados grupos sociais, quem sai ganhando, quem sai perdendo com isso. E cabe haver políticas públicas para garantir que o benefício das tecnologias seja bem dividido socialmente.

JC – Falando em planejamento, diante da situação de crise econômica, o que seria um plano factível de médio e longo prazo para a ciência brasileira hoje?

RJR – Como já fui ministro em uma fase de falta de dinheiro, sei como essa questão é bem complicada. Porque quando o Estado dispõe de dinheiro, sobretudo em um país com muitas carências como o Brasil, ele tem que despender esse dinheiro – não estou falando em gastar, mas investir. Mas quando falta dinheiro, há um problema sério que às vezes fica pela metade alguma coisa que começou, ou tem que retroceder, esse é o desafio do poder público.

JC – Isso prejudica a ciência, que precisa de alguma previsibilidade orçamentária, não?

RJR – Não é só a ciência que necessita planejamento, outras áreas também: a cultura, a educação, a saúde. Em nosso período histórico há uma demanda muito crescente em torno desses bens sociais. A cada ano, apesar de estar diminuindo a demografia, uma certa redução na demanda do ensino fundamental público, a demanda por qualidade cresce. Eu posso ter menos alunos nas salas de aula, mas isso não quer dizer que vou economizar com educação. Até porque temos uma tradição de salas de aulas com alunos demais, é frequente ter salas de aula com 40 alunos, quando nos países mais desenvolvidos, uma sala de 20 alunos é considerada adequada.

JC – Isso é comum no país?

RJR – Quando, no fim de 2015, o Estado de São Paulo quis reorganizar as escolas da rede, fechando escolas, juntando salas de aulas, etc., e cometeu um grave erro. Deveria ter aproveitado essa oportunidade para aproximar os professores dos alunos, um professor para 30 alunos dá mais atenção que um para 40. Esse é um ponto que, aliás, acho que deveria ter sido priorizado nos planos de educação estaduais e municipais daqueles municípios que podem colocar mais dinheiro na educação. Ao invés de discutir factoides, como ideologia de gênero e escola sem partido, teria sido melhor discutir que, na hora em que o município puder, ele vai fazer com que as escolas de alfabetização, por exemplo, tenham salas menores, ou um segundo professor ajudando os alunos a aprender a ler e escrever, a fazer as quatro operações básicas.

JC – O que isso significa na prática?

RJR – Que o planejamento tem que ser feito, mas tem que levar em conta que é preciso cada vez mais investimentos em todas as áreas – educação, ciência, tecnologia, cultura, saúde. Não vai diminuir (a necessidade de investimentos), só vai crescer. O máximo que se consegue, por exemplo, em uma área como saúde, é ter um foco maior na prevenção, porque reduz a demanda dos hospitais e postos de saúde. Por exemplo, reduzindo a gordura e o açúcar, aumentando os exercícios físicos, a detecção precoce de doenças. O Brasil praticamente não fez testagem de covid, fez muito pouco, tem países que levaram a testagem a ponto de fazer aplicativos que detectam que se você esteve em um restaurante e uma pessoa que também esteve no mesmo restaurante testa positivo para a covid, você é chamado para fazer o teste. Isso, evidentemente reduz os gastos com hospitalização. Então, o planejamento não é só do fluxo seguro de investimentos, mas tem que prever aumento dos investimentos e, sempre que possível, atacar as causas.

JC – Onde mais esse planejamento se aplica?

RJR – Outro exemplo: estudos demonstram que quanto mais cedo tratar as crianças, menos problemas ela terá depois. Quer dizer, menos problemas de saúde física, mental, criminalidade e menos dificuldade de aprendizado. Mais cedo significa desde a barriga da mãe. Há todo um conhecimento científico hoje sobre como economizar nos gastos, mas no global sempre haverá uma demanda crescente. O Estado moderno tem que prever isso, tem que levar em conta que o investimento em conhecimento é um dos mais rentáveis que existe, porque ele pode reduzir problemas, melhorar a qualidade de vida. Veja a expansão da expectativa de vida. Quando a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) foi aprovada em 1943, havia uma expectativa de vida dos brasileiros que a maior parte morreria antes de se aposentar por tempo de serviço. Os primeiros homens se aposentaram por tempo de serviço pela CLT em 1978, ou seja, depois de 35 anos de contribuição. Aí começou-se a falar em déficit da previdência social. Até então, a previdência social embolsava o dinheiro que ia para outras coisas. Esses 35 anos de contribuição não foram preservados, foram utilizados inclusive na construção da ponte Rio-Niterói.

JC – Houve muita corrupção também dos recursos da previdência nesse período…

RJR – Sim, houve, mas o principal foi o desvio dos recursos – até dentro da lei – para finalidades que não eram previdenciárias. Você tem um período em que a expectativa de vida era tal que muita gente que contribuía, morria antes de se aposentar, não deixava nem pensão para herdeiros. Hoje temos uma perspectiva de viver 20 anos aposentado, cada vez tem mais gente vivendo mais tempo depois de se aposentar. Isso não é só um problema atuarial, de onde vai tirar o dinheiro, é um problema de qual qualidade de vida essas pessoas vão ter. Como elas vão contribuir para a vida dos outros, não necessariamente pelo trabalho, mas como cidadãos, pessoas saudáveis. São questões que se tornam cruciais e tudo isso tem ciência dentro. Se você consegue detectar uma demência antes dela se manifestar, há uma chance grande de economizar com essa pessoa em termos de gastos com saúde, e por outro lado, garantir uma série de qualidades. Há benefícios que são intangíveis, mas tudo tem conhecimento por trás.

JC – Uma pergunta sobre educação. O Sr. falava da questão da quantidade de alunos por professor, mas pensando na pandemia, houve uma revolução. As escolas fecharam, as aulas passaram para o ambiente virtual e as metodologias de ensino tiveram que ser revistas. A maioria das experiências, aparentemente foi ruim, mas também há relatos de experiências interessantes. Como o Sr. vê a educação a partir de agora que muita coisa se informatizou, se utiliza mais a tecnologia, os cursos online?

RJR – Isso passa primeiro pelo teletrabalho que, para o professor, foi uma forma de home office. O teletrabalho traz vantagens e desvantagens, permite que a pessoa poupe condução, deslocamento, ganhe tempo, permite que se comece as coisas mais na hora certa, eu noto isso inclusive em congressos e colóquios. A vida acadêmica se adaptou bem à distância. Estamos tendo reuniões à distância da SBPC, das universidades, e elas estão sendo eficazes, são bastante pontuais e não se alongam excessivamente. Esse é um lado positivo que provavelmente vai permanecer, mas é preciso manter uma parte presencial, até para as pessoas se conhecerem. O virtual desumaniza um pouco, você não tem o contato do presencial, inclusive transborda para o prazer. Como diz um amigo meu, o importante na banca não é o exame da tese, é o chope depois.

JC – E o ensino fundamental e médio?

RJR – Do ponto de vista do educando, do aluno, é um problema sério. Em uma faixa etária até se tornar um adulto, que mais ou menos coincide com a formatura do ensino superior, para quem não foi reprovado em nenhum ano, até uns 22 anos, ele está em socialização, está conhecendo o mundo. E isso, a distância não tem ou tem muito pouco. No presencial você está conhecendo pessoas, trocando afetos, amizades, aprendendo a florescer, aprendendo os limites, e esse trabalho da educação é muito difícil de ter na educação a distância. Eu penso que a educação a distância – e isso é uma tese que eu tenho faz tempo – no Brasil atual deveria ter dois focos principais: primeiro, o aluno que passou a época, que não cursou na idade certa, o adulto que não fez ensino médio, o adulto já casado, com filhos e quer fazer uma faculdade que não teve condições de fazer quando jovem ou que quer fazer uma segunda faculdade. Nesses casos, acho que a educação a distância é muito boa porque não perturba a vida familiar, a vida profissional, ela acrescenta ao invés de tirar.

JC – Existe outra situação em que a EAD possa ser positiva?

RJR – Outro caso em que a educação a distância me parece bastante positiva é quando, dadas as distâncias que há no Brasil, não há disponibilidade de cursos bons na região. Nesse caso, um EAD (Ensino a Distância) de qualidade pode ser melhor que um curso presencial de má qualidade. A distância sempre tem uma certa perda do fato de não ter a comunicação presencial que é mais quente, então há um esfriamento das relações. Mas se o curso for de boa qualidade, pode ser um acréscimo para a pessoa. Tanto que uma coisa que eu pretendia fazer no MEC e não tive tempo era fazer as universidades federais convergirem para a criação de cursos à distância. Talvez um único curso a distância, ou dois, três, não um por universidade, de cada área, mas os melhores, só autorizando cursos que tivessem a nota máxima na avaliação. Penso que devemos ser mais exigentes com os cursos a distância que com os presenciais, justamente porque ocorre essa perda na comunicação. Mas a educação a distância é limitada, então o processo de socialização é um dos aspectos principais da educação, é a diferença entre educação e o ensino.

JC – Nesse contexto, qual a diferença entre educação e ensino?

RJR – A educação abre perspectivas para as pessoas, muda o sujeito. O ensino, a instrução, a informação, instruem sobre como mudar o objeto. Por exemplo, quando uma pessoa recebe o manual de instruções do micro-ondas, isso não muda nada essa pessoa, ela está apenas aprendendo a manejar um objeto. Agora, ser educado altera a própria forma de ser, de perceber o mundo. Isso é decisivo, crucial, sobretudo na fase de formação das pessoas, e não desaparece depois. Nós precisamos hoje ter uma educação continuada ao longo da vida, não é tirar um diploma e nunca mais voltar ao ambiente de aprendizado. É preciso voltar, mas daí em diante, depois dos 20 (anos), ele pode ser muito variado, a pessoa é mais protagonista e pode ir atrás do que ela quer. Ela não tem que necessariamente receber isso pronto.

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Janes Rocha – Jornal da Ciência