Em 2010, ainda como estudante de jornalismo, Ádria Siqueira participou da 62ª reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Natal, no Rio Grande do Norte. Em 2014, ela atravessou o país e fez um curso de duas semanas sobre jornalismo científico durante a 66ª reunião anual, em Rio Branco, no Acre. No ano seguinte, foi aprovada no mestrado do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp) e em 2018 começou o doutorado em saúde coletiva na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. “Meu plano é seguir a carreira acadêmica com foco na comunicação sobre saúde”, diz ela.
O curso no Acre foi ministrado por professores do Labjor e reuniu 15 estudantes de todo o país. Foi uma das inovações recentes das reuniões anuais da SBPC: os eventos de maior visibilidade pública da sociedade, planejados para promover a ciência nacional e incentivar jovens interessados na carreira acadêmica como Ádria. Em 2017, cerca de 15 mil estudantes acompanharam as palestras de pesquisadores e debates na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte.
Com um volume de público semelhante, o congresso deste ano realizou-se na Universidade Federal de Alagoas, em Maceió, de 22 a 28 de julho, e discutiu a importância da ciência básica, o financiamento à produção científica e tecnológica, as doenças causadas por arbovírus (dengue, zika, chikungunya e febre amarela), a escravidão no Brasil, o uso de territórios quilombolas, a agricultura familiar, as ondas gravitacionais e a estrela de nêutrons, a resistência das bactérias a antibióticos, as políticas de saúde, entre outros temas. Os debates deste ano marcaram os 70 anos de fundação da agremiação.
Itinerantes e gratuitos, com temas variados, os encontros da SBPC atraem público também por causa de outras atividades, que ganharam espaço nos últimos anos. É o caso da exposição de instituições, centros de pesquisa e empresas com itens como maquetes de foguetes, detectores de raios cósmicos, robôs e fósseis, com entrada gratuita e cerca de 6 mil visitantes por dia. O último dia da exposição é reservado para visitas de famílias, também gratuitas.
Diferentemente do que se poderia pensar à primeira vista, não se trata de espetáculos passageiros. “As palestras, os debates e as atividades paralelas sempre deixam sementes, ainda que com germinação retardada. A reunião anual está mais para uma plantação do que fogos de artifício”, diz o físico Ennio Candotti, diretor-geral do Museu da Amazônia (Musa), presidente da SBPC durante quatro gestões e atualmente presidente de honra.
Publicações
Desde 1949, a SBPC publica a revista Ciência e Cultura, inicialmente financiada pelo empresário Francisco Matarazzo Pignatari (1917-1977). Dirigida durante 18 anos pelo médico José Reis (1907-2002), um dos fundadores da associação, a revista era inicialmente trimestral e veiculava artigos escritos por pesquisadores. Em 1991, começou a ser publicada bimestralmente, em inglês. Após alguns anos sem sair por falta de financiamento, em 2002 entrou em outra fase, redigida em português, com periodicidade trimestral e produção editorial a cargo do Labjor.
Atualmente com uma tiragem de 8 mil exemplares, Ciência e Cultura “publica edições temáticas, explora as tendências do desenvolvimento científico, com artigos de divulgação, mas sempre com referências, e seções com reportagens e notícias, tendo como público-alvo os estudantes de pós-graduação”, comenta o linguista Carlos Vogt, reitor da Unicamp (1990-1994), vice-presidente da SBPC (2001-2003 e 2003-2005), presidente da FAPESP (2002-2007) e editor-chefe da revista de 2002 a 2007 e novamente a partir de 2017.
Em 1982, na 34ª reunião anual, em Campinas, saiu o primeiro número de outra revista da SBPC, a Ciência Hoje, criada por Candotti, pelo neurologista Roberto Lent, pelo físico Alberto Passos Guimarães Filho e pelo geneticista Darcy Almeida (1930-2014). Apoiada inicialmente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a revista trazia reportagens feitas por jornalistas e artigos de pesquisadores, com preocupação didática, para atingir um público amplo por meio da linguagem e de temas da atualidade: a primeira edição tratava da poluição em Cubatão. A tiragem saiu dos iniciais 15 mil exemplares e atingiu 80 mil em 1987. Os resultados motivaram o lançamento, em 1986, da Ciência Hoje das Crianças, voltada ao público infantil. “Durante mais de 20 anos, por meio de convênios, o Ministério da Educação e Cultura comprou 180 mil assinaturas da Ciência Hoje das Crianças”, relata Guimarães Filho, presidente do Instituto Ciência Hoje, responsável pela publicação das duas revistas.
No final de 2014, o governo deixou de renovar as assinaturas da revista para crianças. A situação, agravada pela perda de assinantes da Ciência Hoje, levou à dispensa das equipes que a produziam e a interrupção das revistas – em abril de 2016 a Ciência Hoje parou de circular e em dezembro de 2016 foi a vez da Ciência Hoje das Crianças. Segundo Guimarães Filho, convênios com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e com prefeituras para compra de assinaturas permitiram a reativação do site e o reinício da publicação das duas revistas, inicialmente apenas on-line, em julho de 2018. “Estamos retomando, com extrema cautela”, comenta.
As revistas não bastaram para atender aos planos da SBPC. “Vimos que precisávamos de uma publicação mais rápida”, diz o jurista José Monserrat Filho, que criou o Jornal da Ciência, outra publicação da SBPC, novamente com a participação de Candotti. Lançado em 1985 na 37a reunião anual, em Belo Horizonte, inicialmente semanal e com o nome de Informe Ciência Hoje, veiculava notícias e debates sobre política científica e tecnológica. Por criticar decisões do governo federal e de seus representantes na área de ciência e tecnologia, o Jornal da Ciênciatornou-se “o galo de briga da ciência brasileira”, comenta Monserrat, editor da publicação até 2007. Em 1994 começou o JC Online, um clipping diário das notícias e artigos sobre ciência e tecnologia, atualmente com 10 mil assinantes, e em 1997 o Jornal da Ciência ganhou o nome atual, mantendo o foco em notícias e debates sobre política científica e tecnológica, e tornou-se quinzenal, com 15 mil leitores.
O lançamento da Ciência Hoje, da Ciência Hoje das Crianças e do Jornal da Ciência, na década de 1980, marcou uma nova etapa da história da SBPC. Antes dessa fase, a agremiação viveu um período difícil na década de 1970, com embates com o regime militar. Em 1977, o governo federal tentou impedir a 29ª reunião anual, marcada inicialmente para Fortaleza, no Ceará, e transferida para a Universidade de São Paulo, onde também foi proibida, e por fim para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Aqui é território do Vaticano”, argumentou o então arcebispo da capital e reitor da PUC paulistana, dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), bloqueando a intervenção do governo. A SBPC defendeu publicamente a anistia política e a volta de professores exilados do país pelo regime militar.
No último dia do congresso, estudantes, professores e cientistas participaram de um espetáculo musical e teatral, o Show de Música Popular Brasileira da SBPC-77, no Ginásio de Esportes da Portuguesa. De acordo com o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), havia mais de 20 mil pessoas no show, cuja renda foi revertida para a SBPC. Dois meses depois, militares invadiram a PUC e prenderam estudantes e professores considerados opositores do governo militar. Em junho de 2018, em busca de documentos sobre a SBPC, a historiadora Walkiria Chassot encontrou um relatório de 121 páginas elaborado pelo Deops, com notícias publicadas em jornais sobre os debates e as apresentações realizados na reunião da PUC, indicando como o governo seguia de perto os pesquisadores e interessados em ciência.
Não foi a única vez que uma reunião anual da SBPC quase deixa de ocorrer. No início da década de 1990, a SBPC criticava o governo do então presidente da República, Fernando Collor de Mello (1990-1992). “Em 1992, Collor mandou suspender o orçamento para a reunião, mas Lindolpho de Carvalho Dias, que na época era um dos diretores do CNPq, teve presença de espírito e disse que já tinha repassado o dinheiro para a reunião anual”, conta Candotti. Dias presidiu o CNPq na gestão seguinte, de 1993 a 1995. Gradativamente, nos anos seguintes, os congressos da SBPC resgataram o caráter essencialmente científico.
Em paralelo às reuniões anuais – a primeira delas em Campinas, em 1949 –, a SBPC promove conferências de cientistas brasileiros ou estrangeiros em visita ao Brasil. De 1948 a 1951, foram realizados 40 encontros desse tipo, conduzidos por pesquisadores como o patologista Henrique da Rocha Lima (1879-1956), o neurologista Miguel Ozorio de Almeida (1890-1952), os físicos César Lattes (1924-2005), José Leite Lopes (1918-2006) e Marcelo Damy de Souza Santos (1914-2009), o bacteriologista Otto Bier (1906-1985) e o químico naturalizado brasileiro Heinrich Rheinboldt (1891-1955). Entre os estrangeiros, participaram dessas conferências o médico francês Jacques Tréfouël (1897-1977), diretor do Instituto Pasteur de Paris, o fisiologista argentino Bernardo Houssay (1887-1971), ganhador do Nobel de Medicina em 1947, e o fisiologista canadense Charles Best (1899-1978), descobridor da insulina. Com outro tipo de encontro, as reuniões regionais – às vezes até quatro por ano –, a SBPC procura motivar o debate sobre temas de interesse local, como a preservação do Cerrado e a seca no Nordeste, em cidades como Feira de Santana, na Bahia, Cruzeiro do Sul, no Acre, ou Oriximiná, no Pará.
Terceira de quatro reportagens sobre os 70 anos da SBPC.
A próxima reportagem desta série tratará do futuro da SBPC.
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