Sete de Abril, o passado iluminando o futuro

“Ao comemorarmos os 194 anos da abdicação de Dom Pedro I — ou seja, a pouca distância do bicentenário da data — devemos iluminar essa compreensão à luz do trabalho de memória que temos feito, inclusive na SBPC, sobre a ditadura militar e tudo o que ela representa em termos de práticas antidemocráticas constantes em nossa história”, escreve Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, sobre a data em que também se celebra o Dia do Jornalista

No dia de hoje, 7 de abril, celebramos mais um aniversário da abdicação do primeiro governante do Brasil independente, nosso imperador Pedro I. Essa é uma data que deve ser considerada festiva. De fato, Dom Pedro I do Brasil e IV de Portugal foi um personagem bastante ambíguo. No Brasil, ele venceu a metrópole colonial; em Portugal, ele derrotou o absolutismo. E, no entanto…

Se em Portugal ele é o grande líder liberal que se opôs ao absolutismo encarnado por seu irmão, o usurpador Dom Miguel, no Brasil ele é contraditório. Por um lado, proclamou a Independência, separando nosso país da metrópole na qual nascera. Por outro, dissolveu a Constituinte — um ato autoritário que inaugura uma série de golpes de Estado que, esperamos, tenham se encerrado com a tentativa de derrubada do regime constitucional em 8 de janeiro de 2023, pouco mais de 200 anos após a Independência.

Pior que tudo, no final de seu breve reinado de oito anos e pouco, Dom Pedro voltou às tentações absolutistas, expressas sobretudo no uso do poder moderador, que se sobrepunha aos poderes constitucionais e ao único poder eleito, o Legislativo. E foi isso o que levou aos protestos que culminaram na sua abdicação.

Por isso mesmo, essa é uma data significativa para o Brasil. Ela mostra que um governante que falha no compromisso com o Estado de Direito — e pior, que afronta os valores democráticos — deve ser chamado à responsabilidade, deve corrigir sua conduta e, em caso extremo, deve ser destituído por um processo legal e democrático.

No tempo de Dom Pedro, não havia forma de depor legalmente o imperador. Pela definição da Constituição imperial, a pessoa do imperador era “sagrada e inviolável”. Não cabia responsabilizá-lo, menos ainda, destituí-lo. A dissolução da Assembleia Constituinte por Dom Pedro, em 1823, deveu-se, ao que tudo indica, a uma proposta de que, após a morte de cada monarca, a Assembleia Geral poderia rever seus atos e eventualmente cancelar aqueles que fossem desaprovados pela representação popular. Ou seja, Dom Pedro dissolveu a Constituinte justamente quando esta tentou algum controle sobre um poder desmedido, que reunia em suas mãos tanto o poder executivo quanto o poder moderador, ou seja, dois dos quatro poderes constitucionais por ele adotados.

O equilíbrio dos poderes é uma ideia de Montesquieu: se todo poder tende a se fortalecer, o ideal será que cada um se contraponha aos outros. Tal sugestão encontrou forma na Constituição dos Estados Unidos – hoje gravemente ameaçada pelo presidente daquele país – que deu aos três poderes seus nomes atuais, substituindo o terceiro de Montesquieu pelo Judiciário.

Mas dom Pedro I adotou, na sua Carta outorgada após a dissolução de nossa primeira Constituinte, um quarto poder, o moderador. Esse penderia sobre os três poderes, nomeando juízes, dissolvendo o Legislativo e vitaminando o executivo – que por sinal, ao contrário das monarquias constitucionais exemplificadas pela britânica, não dependeria de um Legislativo eleito, mas do arbítrio do monarca.

Há, assim, uma grande diferença entre o contexto do Primeiro Império e o da República Brasileira na década de 2020. No Primeiro Império, havia uma estrutura de mando extremamente oligárquica e hierárquica, que se ajustava bem a uma sociedade marcada pela escravidão. Um Estado fortemente autoritário combinava com uma sociedade escravagista.

Não por acaso, a gota d’água para a queda do primeiro imperador foi o assassinato do médico e jornalista Giovanni Battista Libero Badaró, em São Paulo, quase seis meses antes da abdicação. Fundador do jornal Observador Constitucional, Badaró era um crítico do autoritarismo e defensor da imprensa livre, condição essencial para a democracia. Não por acaso, em 1931 a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) instituiria a data como o “Dia do Jornalista”.

Lamentavelmente, a violência contra profissionais da comunicação permanece um traço persistente da nossa história. Atravessou a ditadura militar e continua a se manifestar em pleno século XXI. Em 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) viu a necessidade de criar um Observatório da Violência contra Jornalistas, iniciativa voltada ao monitoramento dos ataques à categoria e à proteção desses profissionais. E embora decisões recentes do Supremo Tribunal Federal representem avanços — como a de maio de 2024, que considera inconstitucional o uso de ações judiciais para constranger jornalistas -, o Brasil ainda contabiliza agressões recorrentes, censura e ameaças.

Segundo relatório da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), publicado no dia 3 deste mês, a imprensa brasileira foi alvo de agressões a cada cinco dias ao longo de 2024 – majoritariamente durante coberturas políticas, muitas vezes perpetradas por agentes públicos.  Celebrar o 7 de abril é, portanto, mais que um ato de memória: é reafirmar a importância da liberdade de expressão, do direito à informação e da democracia. E esse compromisso democrático precisa ser constantemente revisitado e consolidado.

Completamos há poucas semanas 40 anos de regime democrático, iniciados com o fim da ditadura em 1985. Vale a pena fazer um balanço desse período. A ditadura militar brasileira acabou, mas seus usurpadores do poder — e, por todos os textos constitucionais republicanos, o poder emana do povo — não foram responsabilizados. Não foram punidos.

Os assassinos de Rubens Paiva estão devidamente identificados pelas pesquisas, recebem salários polpudos, sustentam suas condecorações e desfrutam de todas as vantagens sustentadas pelo contribuinte. Isso contrasta com outras ditaduras que terminaram de forma mais humilhante para seus protagonistas.

Temos dois grandes exemplos próximos: Portugal e Argentina.

Portugal, em 1974, encerrou a ditadura salazarista, uma das mais longevas da história, com um ditador que permaneceu quase meio século no poder, fazendo daquele país uma sociedade atrasada, em todos os sentidos. A ditadura caiu por uma revolução, ainda que militar e incruenta. Essa ruptura permitiu o saneamento da função pública, a extinção da polícia política, a exclusão do serviço público dos piores torturadores e, com isso, abriu caminho para uma Constituição altamente democrática e a construção de um Estado com compromisso forte com a democracia.

Na Argentina, a derrota humilhante na irresponsável Guerra das Malvinas levou à responsabilização dos militares, tanto por essa aventura quanto pelos assassinatos em massa que promoveram. Em lugares como a ESMA e inúmeros outros, praticaram tortura e execuções ilegais.

No Brasil, tivemos sim uma Constituição de altíssima qualidade — a melhor de nossa história — e um compromisso democrático muito claro. Mas essa Constituição não se embasou num ajuste de contas com o passado. O fato de não termos feito esse ajuste gerou um enorme problema: a impunidade. Mais que isso: o fato de sociedade e Estado pagarem ainda polpudos valores aos criminosos, golpistas e assassinos, é uma nódoa tremenda, que torna difícil a consolidação dos hábitos democráticos.

Assim, podemos dizer que a Constituição de 1988 é um belíssimo texto, mas cuja implantação permanece falha porque não foram modificados os costumes da sociedade nem as instituições do Estado que permitiriam a concretização do ideal democrático.

Este é o grande desafio que temos hoje.

Por isso, no dia 7 de abril de 2025, ao comemorarmos os 194 anos da abdicação de Dom Pedro I — ou seja, a pouca distância do bicentenário da data — devemos iluminar essa compreensão à luz do trabalho de memória que temos feito, inclusive na SBPC, sobre a ditadura militar e tudo o que ela representa em termos de práticas antidemocráticas constantes em nossa história.

É hora, então, de atuarmos de maneira decidida e firme para que não apenas sejam devidamente apurados os crimes que culminaram na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, como também possamos consolidar, finalmente, valores democráticos que iluminem a ação dos poderes institucionais e tornem a convivência dos cidadãos mais positiva, educada e democrática.

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC