Sistema para monitoramento e análise de riscos climáticos é urgente no Brasil

Em ação proposta pela SBPC, com apoio da ABC e ANM, sociedades científicas de todas as áreas e especialistas de instituições do Rio Grande do Sul se reuniram para discutir estratégias de recuperação da região afetada severamente pelas enchentes; objetivo é que plano de ações seja encaminhado a diferentes atores do sistema político
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Foto: Cemaden

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), com apoio da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Academia Nacional de Medicina (ANM), convocou todas as suas 140 sociedades afiliadas, além de especialistas e representantes de instituições localizadas no Rio Grande do Sul para que, em conjunto, organizem uma frente de auxílio à recuperação do Estado e à identificação de novos eventos climáticos extremos no País.

Realizada na última segunda-feira (03/06), a reunião partiu da preocupação dos especialistas acerca das decisões tomadas por atores políticos locais e nacionais, já que a comunidade científica, em peso, tem identificado há anos o aumento da frequência e intensidade dos eventos climáticos no Brasil, mas seus diagnósticos seguem sendo ignorados durante a elaboração de políticas públicas.

“Eu me recuso a chamar de tragédia o que ocorreu no Rio Grande do Sul, porque tragédia é quando se trata de algo inevitável, o que não é o caso. Diversos relatórios científicos já identificavam a presença das fortes chuvas na região, logo, não é adequado chamarmos de tragédia algo que sabemos que foi causado por ação ou inação humana”, afirmou o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, na abertura dos diálogos.

Além do descaso de atores políticos sobre os diagnósticos ambientais, Janine Ribeiro também ressaltou a ocupação desenfreada de terras alagáveis no estado. “Precisamos cobrar, mais do que nunca, a participação científica neste processo de recuperação. É importante que a restauração do Rio Grande do Sul ocorra de forma correta.”

O objetivo da reunião, além de promover a cooperação das sociedades científicas brasileiras com o Rio Grande do Sul, é também o de evitar que a reconstrução cometa os mesmos erros que levaram à devastação do Estado – daí a importância de se ouvir o que a comunidade científica, gaúcha e brasileira, tenha a contribuir.

O presidente da SBPC também criticou a parceria firmada entre a Prefeitura de Porto Alegre e as consultorias estadunidenses Alvarez & Marsal (A&M) e McKinsey, criticadas pela exploração financeira de tragédias. “É inquietante que a prefeitura esteja fazendo negociações com empresas norte-americanas, que não entendem a dimensão e a realidade do nosso País. O Rio Grande do Sul tem uma estrutura científica enorme, e ela deve ser consultada para apresentar diagnósticos e soluções”, pontuou.

Na conclusão do encontro, decidiu-se pela criação de um Grupo de Trabalho, presidido pela professora Francilene Garcia, vice-presidente da SBPC, do qual também participará a secretária regional da entidade no Rio Grande do Sul, Marcia Margis, além de representantes da ABC e do grupo já criado pela ANM. O grupo dispõe-se a reunir as soluções apresentadas pelos pesquisadores e trabalhar com os órgãos dos governos Federal e estadual criados para a reconstrução do RS.

“A nossa ideia é fazer uma agregação das institucionalidades e competências para que possamos constituir um modelo de atuação de apoio ao Rio Grande do Sul. Porque as problemáticas do Estado hoje são as mesmas que outros estados podem vivenciar no futuro. E é importante também que esse plano de ação tenha uma temporalidade definida, com metas e prazos, para que, de fato, se converta em iniciativas”, disse Garcia.

Falta preparo para as mudanças climáticas

Presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Nader reafirmou a importância de traçar políticas dedicadas à saúde mental. A especialista também criticou uma prática recorrente de governos em ignorar legislações, principalmente ambientais. “Precisamos fazer o máximo possível para que a Ciência seja ouvida. Nós temos legislações, mas elas foram rasgadas, como o Código Florestal do Estado do Rio Grande do Sul”, disse, referindo-se à supressão, em 2020, de muitos dispositivos do referido diploma legal.

Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Márcia Barbosa ocupava a Secretaria de Política e Programas Estratégicos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e se afastou do cargo recentemente. Segundo a especialista, houve uma série de fatores que mostraram como o RS e o País não estão preparados para lidar com os efeitos das mudanças climáticas.

“Nós tivemos problemas com os alertas que indicavam as fortes chuvas. O Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) avisa, mas a reação de estados e municípios a esses alertas não existe. Além disso, o Brasil não possui um sistema específico para monitoramento e análise de riscos. Precisamos criar algo que, além de dizer que vai chover, prepare as prefeituras sobre o que deve ser feito e indique à população para onde ir.”

Barbosa alertou que cada estado da federação deve criar no curto prazo centros para intensificação de riscos, e que, neste cenário, cabe ao Governo Federal centralizar uma dinâmica para tal.

“O Governo Federal precisa criar uma metodologia que possa ser incorporada e modificada para cada região. Porque só no Rio Grande do Sul há diferentes tamanhos de cidades, zonas agrícolas, comunidades tradicionais, e essa metodologia precisa entender a especificidade de cada local. Até por isso que o convênio com instituições internacionais não é o correto, porque uma consultoria que não conhece a região e as políticas locais não trará uma solução adequada.”

Barbosa pontuou a crítica realizada por Janine Ribeiro sobre os convênios que as cidades e o Estado gaúcho estão firmando. “O Rio Grande do Sul é permeado de universidades, por isso é importante que parte do financiamento que o Estado está recebendo seja destinado à ciência local. Essa pressa em resolver a situação fará com que governos procurem as soluções mais fáceis, que vão reconstruir as cidades da mesma forma e, assim, elas enfrentarão a mesma tragédia no futuro”.

A pesquisadora também alertou para os problemas de saúde que estão surgindo na região após os alagamentos, como os milhares de casos de leptospirose que surgiram de uma semana para outra, além dos problemas de saúde mental. “Se vocês andarem pelos pedaços de cidades, verão as pessoas como zumbis, em um estado de tristeza profunda.”

Presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPRGS), Odir Dellagostin afirmou que está em contato direto com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e demais entidades federais.

“Temos interlocuções com o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) e o próprio Ministério. Abriremos, em conjunto, um edital do Pró-Infra dedicado à recuperação da infraestrutura de pesquisa do estado. Realizamos um mapeamento dos danos em laboratórios e o montante necessário para recuperação dessa infraestrutura é estimado em R$ 35 milhões.”

Tragédia vivenciada

De acordo com dados do Governo do Estado do Rio Grande do Sul divulgados nesta terça-feira (04/06), as fortes chuvas, que tiveram início em abril, chegaram a 476 cidades gaúchas. Cerca de 2 milhões e 400 mil pessoas foram afetadas pela catástrofe climática extrema afetada pela falta de políticas públicas de prevenção de desastres, sendo que 571 mil se encontram desalojadas. Mas para quem está no local, a tragédia vai além de números.

“Muitas ruas foram transformadas em lixão, com coisas amontoadas, um cheiro forte. Quando ando pelas cidades, cobrindo a tragédia, o que mais me perguntam é: ‘como vai ser agora?’”, contou o jornalista Juremir Machado, professor de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e editor do jornal O Matinal. Acrescentou que um popular, afetado pelo alagamento, citou um velho ditado, que diz: “Quando a água descobre o caminho, ela vem de novo”.

Igualmente pesquisador da PUC-RS, Jorge Audy ressaltou o papel da 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (5ª CNCTI), que acontecerá em julho e agosto em Brasília, como articuladora essencial de políticas para o enfrentamento desse tipo de tragédia. Audy também afirmou que é uma situação difícil de ser descrita:

“Nas regiões ribeirinhas, por exemplo, a água chegou a dois metros e meio, ela destruiu tudo. A resposta das instâncias públicas estaduais e municipais foi constrangedora, a falta de articulação e governança foi assustadora. Além disso, essa aceleração atrás de consultorias internacionais não tem qualquer base. Só quem coloca o pé na água consegue perceber com o que estamos lidando.”

Rafael Revadam – Jornal da Ciência