Começo este pronunciamento lamentando a morte de mais de 547 mil pessoas no Brasil. É possível que no começo da próxima semana já tenhamos chegado a 550 mil vidas perdidas, e isto é assustador. É assustador saber que a cada minuto morre uma pessoa no Brasil por covid-19, e uma boa parte dessas mortes se deve à falta de cuidados, à falta de seguir as recomendações, à falta de liderança por parte do governo no sentido de instigar, incentivar, ajudar as pessoas a usarem máscaras, a higienizarem as mãos, a manterem o distanciamento físico, além das demoras e problemas na aquisição de vacinas, de que estamos tomando conhecimento cada vez mais.
Primeiro, creio que tenhamos que saudar e ter um pensamento para todos esses mais de 547 mil mortos e para suas famílias. Não há pessoa no Brasil, creio eu, que não tenha um conhecido que tenha morrido de covid. Não há pessoa que não tenha um dia apertado a mão de alguém que morreu em decorrência da doença causada pelo coronavírus. Isso mostra a dimensão desse verdadeiro massacre que está acontecendo no País, em boa parte por falta de responsabilidade dos que deveriam ter prestado atenção a isso. Porque não podemos esquecer que a taxa de mortalidade no Brasil é cinco vezes maior que a média do mundo. Ou seja, se o País tivesse se pautado, não digo por padrões severos de autocontrole, como a Nova Zelândia ou a China, mas simplesmente por medidas adotadas na média do mundo, nós teríamos 400 mil pessoas a menos nos cemitérios. Isto é muito grave.
Alguns estados brasileiros diminuíram de população esse ano que passou, porque morreram mais pessoas que nasceram. E a diferença se deve à pandemia de covid-19.
Eu quero saudar também aqueles do nosso meio que sucumbiram a essa doença. Saúdo-os na pessoa do professor Roberto Romano da Silva, da área de Filosofia, meu colega de graduação, de docência, que faleceu ontem, após 40 dias hospitalizado, devido à covid. Na pessoa dele, eu presto minhas condolências a todos aqueles que morreram em decorrência deste vírus, do mundo acadêmico e de fora do mundo acadêmico.
Quero também lembrar aqui uma recente perda, que já foi devidamente homenageada pela SBPC, mas a quem eu faço questão de fazer a minha saudação novamente, que é o professor Sérgio Mascarenhas. Ele viveu mais de 90 anos, foi presidente de honra da SBPC, sempre cheio de garra e de vida, lutando pela ciência, criando com Sergio Rezende, também é presidente de honra da SBPC, que foi um grande ministro da Ciência e Tecnologia do Brasil – o presidente Lula diz que ele foi o melhor que o País já teve – e que construiu o grupo de Física do Recife a partir do impulso de Mascarenhas. Também muito me honrou Mascarenhas ter encabeçado a lista de apoios a minha candidatura, junto a Rezende.
Quero cumprimentar Juiz de Fora, e aproveitar esta ocasião para manifestar o radical repúdio da SBPC a toda censura a obras de arte. Nesses dias, a cidade foi obrigada a retirar de suas paredes uma exposição itinerante promovida por um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT), dirigido pelo nosso colega associado e palestrante, Leonardo Avritzer: uma mostra sobre a democracia. E essa mostra, que figurava nas paredes de Juiz de Fora, por uma sentença judicial, a nosso ver injusta, foi obrigada a deixar de ser mostrada. Então, quero manifestar também a aversão que tem a SBPC a toda forma de censura da livre expressão artística, da opinião e do pensamento.
Eu saúdo os candidatos às eleições da SBPC, inclusive os que não foram eleitos, mas que são pessoas da mais alta qualidade, em cujas mãos a SBPC estaria muito bem dirigida. Saúdo, em especial, os professores Carlos Alexandre Netto, Renato Balão Cordeiro e Marcos Pimenta, e espero contar com a participação deles e de todos os outros que se apresentaram também às eleições. Nós não podemos prescindir de ninguém, especialmente de pessoas desta alta qualidade, nessa luta em que estamos todos do lado da ciência, da educação, da vida e da democracia.
A SBPC luta pelo progresso da ciência, como está em seu nome, desde 1948, mas é importante dizer que há uma mudança significativa na ciência ao longo do século XX. Podemos dizer que em meados desse século, um símbolo importante (talvez não a mais importante criação da ciência na década de 1940) foi a bomba atômica. A ciência durante todo um tempo esteve muito ligada à pesquisa militar, como disse Celso Furtado, relembrado no texto lido pela sua esposa, Rosa Freire d’Aguiar, no vídeo apresentado há pouco. A ciência esteve por décadas, muito vinculada à pesquisa bélica, ao Pentágono, nos Estados Unidos, às forças armadas soviéticas e de outros países, que investiram muito em laboratórios que desenvolvessem estudos que levavam à guerra, ou seja, à morte.
Curiosamente, por coincidência, o primeiro artigo que eu publiquei na grande imprensa foi na Folha de S. Paulo, e chamava-se “Ciência sem o Pentágono”, em 1972. Era a ideia que um candidato à Presidência dos EUA pelo partido Democrata na década de 1970 (um dos candidatos mais progressistas que aquele país já teve), o senador George McGovern, propunha, de emancipar a ciência dessa hipoteca, dessa subordinação às forças armadas, fazendo da ciência algo mais voltado à paz.
E penso que se olharmos os símbolos do que a ciência considera hoje em dia, nós diríamos que são o meio-ambiente, a saúde, a inclusão social. É uma trindade que se reúne em torno da paz e da democracia. Mudou, então, o foco principal da ciência. Hoje, um evento científico, como a Reunião Anual da SBPC, é sempre um encontro do saber, uma festa da democracia, uma defesa da paz e da melhora das condições de vida para todas as pessoas.
Esta defesa da democracia leva a SBPC também a repudiar qualquer ideia de não haver eleições em 2022. Haverá eleições em 2022. A Constituição prevê, o sistema democrático brasileiro prevê que elas ocorram e não há pretexto que possa justificar a sua não realização ou o desrespeito ao seu resultado. Nós temos muitas deficiências na democracia? Temos. A democracia no Brasil é uma planta tenra – esta é uma frase da década de 1940/50 – e eu diria mais tenra ainda, a democracia no Brasil somente se fortalece a partir de 1985 e, posteriormente, com a Constituição Federal de 1988, ainda que esteja hoje em crise. Mas, de qualquer forma, nós repudiamos toda e qualquer ideia de não haver eleições. Tem que haver alternância no poder, tem que haver eleições democráticas. ninguém pode ser impedido de concorrer, através de golpes baixos, de violações da lei e da moral, de procedimentos que já vimos no passado, que já vimos em países que não são democráticos, nos quais se pretexta alguma coisa para impedir a livre expressão da vontade do povo.
Por isso mesmo, não aceitamos tutela de ninguém sobre o povo brasileiro e sobre a livre expressão de sua vontade. Ninguém tem o direito de tutelá-lo. Qualquer roupa que use, qualquer uniforme, ninguém tem o direito de tutelar a expressão livre da vontade do povo nas eleições e em outras formas pelas quais ele pode se organizar e defender seus direitos.
Também queremos a apuração até o fim das responsabilidades pelas mortes decorrentes da covid-19. Sobretudo aquelas que derivam do descaso com as medidas de proteção, ou do descaso com a aquisição de vacinas no tempo devido. Essa apuração deve ser conduzida por quem de direito: a Câmara dos Deputados, o Senado, o Supremo Tribunal Federal. E deve levar às consequências previstas na Constituição e nas leis brasileiras. Ninguém está acima da lei. Isto é um princípio básico do qual não devemos jamais abrir mão.
Voltando aos três pontos que eu frisei serem importantes na ciência – meio ambiente, saúde e inclusão social -, uma sociedade para o progresso da ciência tem sempre que defender a educação. A educação está em nosso DNA. Então, nós a defendemos não apenas no nível superior e na pós-graduação, onde se faz ciência, mas desde a educação básica. Na verdade, desde a creche. Começa nos primeiros anos de idade a produção, a reprodução da injusta desigualdade social que assola nosso País.
É uma educação básica pública de qualidade que pode tornar o Brasil em um país que realmente proporcione uma igualdade de oportunidades, permitindo que todos os mais pobres tenham acesso às mesmas vantagens dos mais ricos.
É assustador pensar que temos apenas cerca de 30% da população brasileira com toda a sua capacidade sendo utilizada. E talvez apenas esses 30% tenham condições de moradia, alimentação, saúde, educação e emprego, que permitam realizar todas as suas potencialidades. E que 70% desse contingente estejam reduzidos a não terem possibilidade de encontrar sua vocação.
Quantas vocações de cientistas, professores, artistas, empresários, médicos não são perdidas porque as pessoas não têm as condições mínimas de saúde, alimentação, moradia e educação para prosperar e realizar tudo o que podem fazer?
Muitos conhecem (Antoine de) Saint-Exupéry, o grande escritor francês, pelo livro “O Pequeno Príncipe”, mas eu lembro outra obra sua, que me é muito querida, “Terra dos Homens”. Neste livro, ele narra uma viagem em que encontra uma mãe, miserável, com um menino subnutrido no colo. Ele então pensa: pode ser um Mozart assassinado. Quer dizer, pode ser uma pessoa que teria uma capacidade gigantesca de desenvolvimento e cujo talento está sendo assassinado pela fome, pela subnutrição, no caso, também, pela guerra mundial.
O Brasil é um país que assassina Mozarts em grande quantidade. Nós não podemos mais aceitar isso. Temos que garantir uma situação social em que todas as pessoas tenham direito à vida e todos os talentos possam ser realizados.
Imaginem: se com 30%, que é o meu cálculo, de pessoas com capacidade de realizarem-se, nós conseguimos ser a 11ª nação do mundo em produção científica qualificada, chegamos a ser a 6ª economia mundial, do que seríamos capazes se, ao invés de 30%, tivermos 70, 80, 90 e, espero que não demore muito, 100% de pessoas com as oportunidades na sua vida?
E isso somente se fará através do círculo virtuoso no qual opera a SBPC. Eu dizia: ciência, educação, acrescento cultura (e com o nome se compõe a nossa revista histórica, Ciência & Cultura), o meio ambiente, a saúde, a inclusão social e a tecnologia. Esses sete fatores formam um círculo virtuoso que é capaz de fazer um país se desenvolver.
Nós estamos numa sociedade dita do conhecimento. Isto que dizer que a economia somente se realizará se ela tiver muita inteligência embutida nela. Você não pode mais ficar pegando a matéria prima, exportando-a tal e qual, ou com apenas uma pequena elaboração. Tudo isso tem que ser desenvolvido com muito mais riqueza, mais qualificação, com muito mais qualidade. E é isso o que o Brasil tem que fazer. O Brasil pode render três vezes mais.
Então, do que nós precisamos? Primeiro, nós precisamos garantir a democracia. A democracia é o melhor regime que existe. É o melhor regime para podermos realizar as potencialidades das pessoas, para aceitar a diversidade delas, para que todos possam florescer.
Num primeiro tempo, isto significa defender a ciência, a educação, a cultura, o meio ambiente, a saúde e seus orçamentos, que estão seriamente prejudicados, seriamente ameaçados. Essa é uma luta cotidiana, que vem sendo travada ao longo de todo o mandato de Ildeu Moreira e com a qual nos comprometemos. Vamos lutar pela recomposição desses orçamentos e pela valorização de todos esses bens da humanidade, bens culturais, democráticos, que são frutos incríveis, que melhoraram a expectativa de vida, a dignidade das pessoas, o respeito ao diferente, a aceitação dos que eram oprimidos, reprimidos, humilhados, ofendidos. Vamos lutar pela recomposição e pela defesa disso tudo.
Num segundo momento, temos que construir um projeto de Brasil em que a ciência seja mais protagonista do que nunca. A ciência foi, e assim tem que ser, utilizada por sucessivos governos. Você não pode governar um país sem ter conhecimento do que as ciências dizem. E quando digo ciências, estou falando de todas. Não estou falando apenas do fato óbvio de que você não pode cuidar da saúde sem a pesquisa em saúde; você não pode enfrentar uma doença, seja uma pandemia, sejam doenças cotidianas, se não tiver pesquisa científica constante nas áreas biológicas e de saúde.
Mas, além disso, você não pode governar uma sociedade se ignorar a ciência do social, a sociologia. Não pode cuidar de uma cidade, se ignorar as pesquisas em urbanismo, que mostram, aliás, o quanto o Brasil descuida de suas cidades, que se tornam, muitas vezes, locais de péssima residência, de péssima vida, de má qualidade de saúde e tudo o mais.
Nós temos que garantir que a ciência seja, mais do que jamais no passado, protagonista de um novo Brasil. Não há projeto de futuro para o País sem a ciência. Não há futuro sem o conhecimento rigoroso e bom.
E é isso o que queremos fazer, mantendo a SBPC ao lado de todas as forças vivas que lutam pela democracia, pela vida, pelo conhecimento.
Muito obrigado a todos. Eu quero agradecer, mais uma vez, a todos que participaram desta 73ª Reunião Anual, a todos os que venham a ver ainda os inúmeros vídeos que a SBPC deixa como memória desse evento notável e convidar a todos a participarem da 74ª Reunião Anual, que se realizará na capital da república, em Brasília, em julho de 2022.
Convido-os também a assistirem ao coral da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), parceria da SBPC na realização deste encontro, que vai novamente celebrar essa belíssima música, Angélica, na qual Chico Buarque pergunta: “quem é essa mulher que chora por um filho que foi desaparecido?”. Um filho que foi assassinado. Nós não devemos mais aceitar que pessoas sejam assassinadas. E eu penso nos assassinados por delitos políticos, nos assassinados por massacres como o recente no Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Todos eles estão no meu pensamento e, acredito, no pensamento de todos nós.
Nossa nova Diretoria saúda todos vocês em conjunto.
Renato Janine Ribeiro
23 de julho de 2021
*O texto deste discurso difere em alguns pontos e expressões da apresentação feita oralmente no Encerramento da 73ª Reunião Anual da SBPC.