Somente com o entendimento sobre o passado discriminatório que ainda cerca o ensino superior e o olhar ao novo perfil universitário é que o Brasil oferecerá uma educação pública de qualidade. Estes são os principais diagnósticos do primeiro debate do Fórum da Educação Superior, uma iniciativa da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Realizado na última terça-feira (27/02), o encontro teve como tema “Um resgate histórico sobre o ensino superior no Brasil”, e contou com as participações do professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor convidado da Universidade de São Paulo (USP), Naomar Monteiro de Almeida Filho, e do pesquisador associado do Instituto de Estudos de Política Econômica do Rio de Janeiro e professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Simon Schwartzman.
“São dois perfis bastante complementares. Naomar, uma pessoa que dirigiu uma universidade, a UFBA, e Schwartzman, uma pessoa que reflete profundamente sobre a universidade. Além disso, é muito bom que este projeto conte com o envolvimento das duas sociedades científicas que lutam sobre o tema da Educação: a SBPC e a ABC”, comentou o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, na abertura do evento.
O debate contou também com a presença da presidente da ABC, Helena Nader, e foi mediado pelos professores Santuza Maria Ribeiro Teixeira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Aldo Zarbin, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro do Conselho da SBPC.
Este foi o primeiro de uma série de webinários que vão ocorrer durante todo o ano 2024, sempre nas últimas terças-feiras de cada mês, às 16h, com transmissão no canal da ABC no YouTube. “É uma programação criada com o objetivo de pensar, repensar e propor modelos para melhorar, democratizar e ampliar o ensino superior no Brasil. Para começar, nada melhor do que contar a história do ensino superior e refletir o seu passado”, introduziu Zarbin.
Abrindo a exposição de ideias, o pesquisador Naomar Monteiro de Almeida Filho trouxe uma linha do tempo sobre os casos de colonialidade na universidade brasileira, desde o seu início até os dias de hoje. Almeida Filho também apresentou os estudos do historiador Alfredo Bosi (1936-2021), principalmente os presentes na obra Dialética da Colonização.
“Bosi falava muito que as matrizes mentais que constituem a história ficam na sociedade, e ficam onde? Nas instituições. Dentre essas matrizes estão o racismo, o elitismo e toda a conjuntura opressora. É uma crítica que permeia a universidade brasileira, porque ela reproduz, e muitas vezes nem sabe, esse arcabouço ideológico da nossa história.”
Baseado nos conceitos de Bosi, o pesquisador apresentou sete conceitos chamados de pragas curriculares da educação superior brasileira:
“Primeiro, são instituições que têm uma base profissionalista. Não é profissional e nem profissionalizante, é profissionalista. Ou seja, submissa às corporações. Segundo, são focadas no primarismo, ou seja, estruturadas na ideia de que existe uma linearidade ou certa gradualidade de complexidade do ensino, e atribui ao que chamamos de graduação o começo desse primarismo.”
O terceiro ponto é que as instituições de ensino superior são conteudistas, se estruturando por blocos de informação, categorias de ensino, o que é complementar ao quarto tópico, que descreve as instituições como disciplinares, no sentido de fragmentar saberes.
“Já o quinto ponto é que as instituições são aditivas, elas têm a concepção do currículo como algo que se soma, por isso que toda reforma curricular nas universidades começa com um foco e termina na proliferação de assuntos e temas. O sexto item é a linearização, e aí já é uma interpretação minha, que é a praga dos pré-requisitos necessários. E, por fim, o curriculismo, a crença de que reformas tópicas em listas e repertórios definidos é o suficiente para se ter uma renovação – ou, talvez, uma inovação – no ensino universitário.”
O especialista concluiu que é preciso um conjunto de recursos e olhares à sociedade para mudar o ensino superior. “É necessário muito investimento e muita inteligência nessa instituição fascinante que é a universidade.”
Simon Schwartzman, por sua vez, afirmou que olhar para o passado é necessário não só para visualizar as problemáticas que o País segue reproduzindo, mas também entender o que se perdeu e o pode ser retomado.
“Conhecer a história é essencial para compreender o sistema de educação superior que temos hoje, não somente para recuperar valores e experiências passadas que possam servir de ensinamentos, mas, sobretudo, para entender as concepções e instituições com as quais convivemos muitas vezes sem nos darmos conta de onde vieram, e que poderiam ser diferentes.”
Schwartzman pontuou que a última reforma do ensino superior realizada no Brasil foi em 1968, quando o País decidiu se espelhar no modelo norte-americano das universidades de pesquisa, substituindo o antigo modelo das faculdades dedicadas à formação profissional, vindo da colonização portuguesa.
“As antigas faculdades brasileiras tinham por função formar e certificar pessoas para o exercício das profissões de nível superior, como o direito, a medicina e a engenharia, e os professores eram bacharéis que formavam seus alunos à sua imagem e semelhança. No novo formato, os professores universitários deveriam ser doutores pesquisadores, trabalhando em tempo integral, para os quais o ensino e a pesquisa seriam indissolúveis”, detalhou.
As mudanças no modelo vieram, mas no papel. O aumento da demanda pelo ensino superior fez com que a visão sobre a importância da pesquisa fosse atropelada por questões administrativas e, como as universidades públicas não conseguiram atender ao número de pessoas interessadas, o ensino superior privado ganhou força.
“No vácuo, o sistema privado expandiu, frustrando as tentativas do Governo Federal de ajustá-lo às regras da reforma. Hoje, mais de 75% das matrículas do ensino superior brasileiro são nas instituições privadas, e a grande maioria das públicas têm o formato e os custos das universidades de pesquisa, mas na prática funcionam como as antigas faculdades tradicionais”, afirmou.
O professor ressaltou alguns dados que mostram como o ensino superior foi se distanciando da sociedade – hoje, só 20% da população entre 18 e 24 está matriculada no ensino superior, o que impacta também na diversidade dos universitários que se formam e na pluralidade das instituições.
“No papel, o sistema público de ensino superior é um sistema igualitário, em que todos os títulos são equivalentes, todos os professores são doutores e pesquisadores, e todas as instituições podem dar os títulos que queiram, desde que cumpram os critérios de qualidade. Além disso, a universidade é para todos. Mas, na prática, é um sistema profundamente desigual, que ainda exclui 80% dos jovens, e que metade dos alunos nunca termina seus cursos.”
O debate “Um resgate histórico sobre o ensino superior no Brasil” está disponível na íntegra no canal da ABC no YouTube e a transcrição da fala do professor Simon Schwartzman pode ser conferida em seu site pessoal.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência