Durante a pandemia, de cada dez mulheres grávidas que morreram devido à covid-19 no mundo, oito estão no Brasil. No ranking internacional de feminicídio, o Brasil ocupa a quinta posição entre 83 países, com uma taxa de feminicídios por 100 mil mulheres. O aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil, sendo responsável por mais de 200 mortes de mulheres, além de graves complicações de saúde. Esses números assustadores foram apresentados na 73ª Reunião Anual (RA) da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em dois eventos que discutiram os Direitos das Mulheres.
A conferência “Direitos Humanos Das Mulheres: Uma Conquista Histórica” foi realizada na segunda-feira (19) pelo juiz José Henrique Torres, da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Já a mesa-redonda “Direitos das Mulheres no Brasil: Onde Estamos e Para Onde Vamos” contou com Rosângela Aparecida Talib, do movimento Católicas pelo Direito de Decidir, Jefferson Drezett Ferreira, professor do Departamento de Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Tamara Kotzarew, do Centro de Salud y Acción Comunitária e do Hospital J M Penna da Argentina, além da participação especial de Ennio Candotti, diretor do Museu da Amazônia e presidente de honra da SBPC. Ambos os eventos foram coordenados por Rute Maria Gonçalves de Andrade, conselheira da SBPC e pesquisadora da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM).
“Tratar dos direitos das mulheres é uma conquista diária, lutamos em todos os setores, e vemos nesse momento alguns retrocessos, então esse debate é extremamente necessário”, afirmou Andrade.
Uma história de luta
O reconhecimento dos direitos das mulheres é fruto de um longo processo histórico. “A história das mulheres é uma história de violência, dominação e exclusão”, relembra Torres. Ao longo da história, vários documentos pensaram e discutiram os direitos dos homens – porém deixaram de fora as mulheres.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, quebra o paradigma da Revolução Francesa que falava dos ‘Direitos dos Homens’. “A partir de 1948 se declarava que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, sem qualquer distinção de qualquer espécie, principalmente de raça, cor ou origem nacional”, explica Torres. Porém, logo as mulheres perceberam que também não haviam sido contempladas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. A partir das décadas de 1950 e 1960, a luta pelos direitos das mulheres se acirra, afirmando que sem as mulheres os direitos não são humanos.
A consequência da discussão foi a promulgação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), em 1979, pela Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1995, continuando essa luta, as mulheres conquistam a Conferência Mundial Sobre a Mulher em Pequim. “Em um desses dispositivos ficou afirmado uma expressão espetacular: que os direitos das mulheres são direitos humanos. Isso é algo extraordinário, porque é como se o sistema normativo de Direitos Humanos estivesse afirmando, reconhecendo, declarando, que as mulheres são seres humanos”, ressalta Torres.
“Assim como se faz a divulgação científica, é preciso fazer a divulgação dos direitos humanos e dos direitos das mulheres para as pessoas conhecerem”, aponta Andrade.
Descriminalização do aborto
Os participantes foram unânimes ao abordar a questão do interrupção da gravidez e concordar que criminalização do aborto é incompatível com a garantia da saúde das mulheres.
Tamara Kotzarew, do Centro de Salud y Acción Comunitária e Hospital J M Penna da Argentina, participou efetivamente da campanha nacional de direto ao aborto seguro e gratuito no país e contou como foi a experiência. “Nossa luta foi para que para que o aborto saísse da clandestinidade, e que não houvesse mais nenhuma mulher morta devido ao aborto clandestino”, declarou. A médica ainda enfatizou a importância da educação sexual nas escolas.
Ferreira reforçou os argumentos da médica trazendo dados mundiais sobre o aborto. “Temos uma distribuição muito clara: países desenvolvidos optando majoritariamente por não descriminalizar o aborto como uma forma de buscar uma justiça reprodutiva mais adequada, divergindo de países em desenvolvimento, que ainda mantêm leis muito restritivas em relação ao aborto”. Segundo o professor, os países desenvolvidos que optam pela não criminalização do aborto apresentam taxas menores de interrupção de gravidez. Por outro lado, os países em desenvolvimento não têm conseguido fazer essa redução, e nos últimos anos essas taxas tem aumentado, assim como a mortalidade e as sequelas.
“Não é possível que as mulheres continuem morrendo devido a abortos inseguros, que são casos preveníveis. A maternidade tem que ser uma escolha, não uma imposição biológica”, alertou Talib. Ela alerta que o Brasil assiste a um retrocesso, com leis como a PL 2125/2021, que aumenta as penas de crime de aborto, e a PL 2893/2019, que retira do Código Penal o direto o direito ao aborto em caso de risco de morte ou gravidez decorrente de estupro, tramitando no Congresso.
Segundo Torres, 13% a 25% das mortes maternas decorrem do aborto inseguro e cinco milhões de mulheres a cada ano ficam com sequelas, principalmente reprodutivas. “Por tudo isso, o Comitê de Direitos Humanos da ONU afirmou expressamente que negar ou dificultar o acesso ao aborto legal é uma violação dos direitos mais básicos da mulher”, frisou.
Um longo caminho
Foi um longo caminho percorrido, mas ainda há um longo caminho a percorrer. “Nós mulheres infelizmente ainda há muito pouco tempo conseguimos o direito de votar, há muito pouco tempo tivemos o direito de ter uma conta bancária. Ainda temos uma sociedade com valores extremamente patriarcais. Ainda temos muito o que discutir sobre emancipação feminina no século 21”, afirma Talib.
Mas é uma luta necessária, e que vale a pena. De acordo com Ferreira, a crise atual tem o potencial de catalisar os efeitos das violações de gênero e aprofundar as desigualdades já existentes. Portanto é importante agir. “O Estado Brasileiro não pode se comportar de modo infantil, como uma criança que não sabe que caminho deve tomar em relação aos direitos humanos das mulheres, mas deve fazer sim uma escolha de qual caminho seguir nessas circunstâncias.”
“A emoção que traz a luta das mulheres é muito importante para continuar essa luta na América Latina e no mundo. E também é importante pensar em todas as dificuldades que as mulheres passaram para chegar até aqui”, enfatiza Kotzarew.
“Em 1988, nós (da SBPC) fizemos uma parceria com a Asociación Ciencia Hoy e lançamos o primeiro número da revista Ciencia Hoy, com um artigo sobre aborto”, relembra Candotti. “Precisamos resistir nas barricadas, porque elas acabarão vencendo. Nesse momento cabe a nós levar adiante o exemplo.”
Com uma mudança cultural que fortaleça as relações compartilhadas entre homens e mulheres, essa luta será mais justa. “Nós temos que estar ao lado das mulheres, porque essa luta das mulheres no fundo é uma luta de toda a sociedade que deseja um país democrático e justo, uma convivência harmônica entre todos nós”, frisou Torres.
“Os nossos direitos não têm a ver com partido político ou com ideologias, tem a ver com direitos que foram conquistados e que são para todas as pessoas”, finalizou Andrade.
Christiane Bueno – Jornal da Ciência