Quando o autoritarismo chegou ao Brasil, a SBPC respondeu que não há Ciência sem liberdade

Segunda reportagem especial sobre os 75 anos da entidade fala da ditadura militar e como a mobilização popular foi essencial para a realização das Reuniões Anuais nesse período. Aniversário de fundação da SBPC é neste sábado, 8 de julho

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Pouco mais uma década após sua criação, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) acumulava conquistas para a consolidação de um Sistema Nacional de Ciência, como a criação CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), mas a mudança política do País na década de 1960 fez a entidade sentir o impacto do golpe militar de cara.

Já na 16ª Reunião Anual da entidade, realizada em 1964, dois professores foram presos: Michel Rabinovitch e Luiz Hildebrando Pereira da Silva. O motivo da prisão era que ambos foram considerados comunistas, o que era crime num Brasil autoritário.

“Rabinovitch conseguiu escapar – estava com viagem marcada para os Estados Unidos; se fosse preso, perderia o estágio. Retornou ao Brasil 33 anos depois. Hildebrando acabou sendo preso; passou dois meses detido, foi solto, cassado e se exilou na França”, contam os pesquisadores José Roberto Ferreira e Ulisses Capozzoli, na obra Ciência para o Brasil, 70 anos, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

O fato é que a SBPC, como qualquer outra entidade civil, não tinha como bater de frente com o governo militar, mas ela tentava, no começo, criar pontes de diálogo com as gestões autoritárias.

“O que a SBPC fazia muito era discutir com o governo, com muita parcimônia, muitos dedos, para que o governo não cometesse excessos, para que ele respeitasse a liberdade científica. E só por isso ela já era chamada de comunista”, complementa o historiador Bruno Roma, que integra o Centro de Memória da SBPC.

Em 1977 houve um ataque governamental bastante claro contra a entidade. A 29ª Reunião Anual da SBPC estava planejada para ser realizada em Fortaleza, na Universidade Federal do Ceará (UFC), mas mesmo com tudo previamente acordado, a universidade simplesmente parou de responder às demandas da SBPC. O atraso nas respostas fez a entidade buscar outra instituição – no caso, a Universidade de São Paulo -, que se recusou a acolher o evento. Com essas dificuldades, e ainda enfrentando cortes de recursos federais, a SBPC entendeu o que estava acontecendo: era uma proibição do Estado.

Então, houve mais uma articulação, dessa vez com a PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), por meio do arcebispo metropolitano de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, que aceitou, corajosamente, sediar o evento em uma instituição privada. Também houve uma grande campanha para cobrir os custos de realização da Reunião Anual, o que envolveu leilões de artes, doações de bilheterias de teatros e até um show com as presenças de Chico Buarque e Milton Nascimento.

E não acabou por aí: com a 29ª Reunião Anual da SBPC confirmada e prestes a acontecer, os militares implicaram com o pôster de divulgação do evento, alegando que as letras P e C, que são do logo da SBPC, estavam em destaque, numa referência à sigla do Partido Comunista. Mas nem o devaneio artístico do Governo Federal impossibilitou a realização do evento, que foi um sucesso absoluto e memorável de público.

Cientistas sociais e problemáticas nacionais

whatsapp-image-2023-07-04-at-12-51-47Mas o que fez com que a SBPC se tornasse alvo do Governo Federal? A partir da ditadura militar, e com mais força na década de 1970, a entidade começou a questionar a visão da época sobre a Ciência. Esses embates começaram, principalmente, entre um dos fundadores da SBPC, Maurício Rocha e Silva, e o então presidente da entidade, Oscar Sala.

“Oscar Sala defendia posições de uma acentuada neutralidade da Ciência e de uma certa passividade referente às pressões políticas da ditadura militar. Contra essa linha estava o professor Maurício Rocha e Silva, que também era da diretoria da SBPC”, relata o presidente de honra da SBPC, Ennio Candotti, que viveu os dias de tensão na Diretoria da entidade.

Se no primeiro momento da ditadura, a SBPC chegou a ver como positiva uma certa visão científica do governo – com destaque aos estímulos à política nuclear -, não demorou muito tempo para a entidade perceber o caminho nefasto de uma gestão autoritária. Quando a SBPC passou a questionar as decisões militares, ela simplesmente foi excluída das novas ações de política científica. E aí, começou um movimento mais crítico da entidade. É o que explica a professora Ana Maria Fernandes, na obra A construção da ciência no Brasil e a SBPC.

“A partir de 1975, portanto, a SBPC adotou o que foi descrito como a sua ‘função crítica’ e iniciou o debate sobre uma série de temas econômicos, sociais e políticos. Estes incluíam discussões sobre o papel político da ciência; a política nuclear do regime; a defesa; o meio ambiente; a estatização da economia; a anistia; a reintegração dos professores universitários compulsoriamente aposentados; e um apelo pela abolição do Decreto nº 477, de 1968, que restringia severamente a liberdade política nas universidades (…) A SBPC, de fato, contribuiu para o fortalecimento da sociedade civil, que tinha sido severamente debilitada pelos longos anos de ditadura militar”, ressaltou Fernandes em seu livro.

As pautas se tornaram mais plurais: não se tratavam apenas das condições de trabalho dos cientistas, mas dos direitos de toda a população. E a entidade, que começou falando de instituições científicas, tinha, após a luta pela liberdade política, um novo desafio: a construção de uma nova Constituição Federal.

“O movimento de trazer cientistas sociais para a SBPC botou fogo nas Reuniões Anuais da entidade, porque eles passaram a ser um espaço de lugar de fala de muitas reivindicações. Os cientistas sociais começaram a trazer para esses encontros cada vez mais problemas sociais do Brasil. A fome, a falta de emprego, a falta de liberdade, eles pedem anistia e também uma constituinte. Tudo isso começa a acontecer na década de 1970”, conclui o historiador Bruno Roma.

Recontando o passado

Esta reportagem é parte de uma série especial para os 75 anos da SBPC, que serão comemorados no próximo sábado, dia 8 de julho.

Se quiser saber mais sobre o período da ditadura militar e como ele afetou a percepção de cientistas no Brasil, basta ouvir os episódios “Nos tempos da ditadura” e “Divergências na ciência” do podcast O Som da Ciência, uma produção da equipe de comunicação da SBPC.

A matéria também utilizou apuração do Cent

Mas o que fez com que a SBPC se tornasse alvo do Governo Federal? A partir da ditadura militar, e com mais força na década de 1970, a entidade começou a questionar a visão da época sobre a Ciência. Esses embates começaram, principalmente, entre um dos fundadores da SBPC, Maurício Rocha e Silva, e o então presidente da entidade, Oscar Sala.

“Oscar Sala defendia posições de uma acentuada neutralidade da Ciência e de uma certa passividade referente às pressões políticas da ditadura militar. Contra essa linha estava o professor Maurício Rocha e Silva, que também era da diretoria da SBPC”, relata o presidente de honra da SBPC, Ennio Candotti, que viveu os dias de tensão na Diretoria da entidade.

Se no primeiro momento da ditadura, a SBPC chegou a ver como positiva uma certa visão científica do governo – com destaque aos estímulos à política nuclear -, não demorou muito tempo para a entidade perceber o caminho nefasto de uma gestão autoritária. Quando a SBPC passou a questionar as decisões militares, ela simplesmente foi excluída das novas ações de política científica. E aí, começou um movimento mais crítico da entidade. É o que explica a professora Ana Maria Fernandes, na obra A construção da ciência no Brasil e a SBPC.

“A partir de 1975, portanto, a SBPC adotou o que foi descrito como a sua ‘função crítica’ e iniciou o debate sobre uma série de temas econômicos, sociais e políticos. Estes incluíam discussões sobre o papel político da ciência; a política nuclear do regime; a defesa; o meio ambiente; a estatização da economia; a anistia; a reintegração dos professores universitários compulsoriamente aposentados; e um apelo pela abolição do Decreto nº 477, de 1968, que restringia severamente a liberdade política nas universidades (…) A SBPC, de fato, contribuiu para o fortalecimento da sociedade civil, que tinha sido severamente debilitada pelos longos anos de ditadura militar”, ressaltou Fernandes em seu livro.

As pautas se tornaram mais plurais: não se tratavam apenas das condições de trabalho dos cientistas, mas dos direitos de toda a população. E a entidade, que começou falando de instituições científicas, tinha, após a luta pela liberdade política, um novo desafio: a construção de uma nova Constituição Federal.

“O movimento de trazer cientistas sociais para a SBPC botou fogo nas Reuniões Anuais da entidade, porque eles passaram a ser um espaço de lugar de fala de muitas reivindicações. Os cientistas sociais começaram a trazer para esses encontros cada vez mais problemas sociais do Brasil. A fome, a falta de emprego, a falta de liberdade, eles pedem anistia e também uma constituinte. Tudo isso começa a acontecer na década de 1970”, conclui o historiador Bruno Roma.

Recontando o passado

Esta reportagem é parte de uma série especial para os 75 anos da SBPC, que serão comemorados no próximo sábado, dia 8 de julho.

Se quiser saber mais sobre o período da ditadura militar e como ele afetou a percepção de cientistas no Brasil, basta ouvir os episódios “Nos tempos da ditadura” e “Divergências na ciência” do podcast O Som da Ciência, uma produção da equipe de comunicação da SBPC.

A matéria também utilizou apuração do Centro de Memória da SBPC e trechos das obras “A construção da ciência no Brasil e a SBPC”, de Ana Maria Fernandes, e “Ciência para o Brasil: 70 anos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência”, organizado por Helena Nader, Vanderlan Bolzani e José Roberto Ferreira – este último está disponível para download gratuito no site da SBPC.

Rafael Revadam – Jornal da Ciência