EDITORIAL: Beleza editada

Editoria especial desta sexta-feira discute a preocupante obsessão com padrões inalcançáveis de beleza. “É possível fugirmos dessa tirania e promovermos um ambiente onde a beleza verdadeira seja reconhecida na diversidade e onde o bem-estar físico e mental prevaleça?”, questiona o filósofo Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC

WhatsApp Image 2024-06-07 at 16.24.05 (1)Vivemos em uma era em que a imposição da perfeição estética se tornou onipresente e, ao mesmo tempo, cada vez mais inalcançável. Redes sociais, revistas e a mídia em geral promovem diariamente imagens irreais de corpos esculturais, pele impecável e cabelos sempre brilhantes. Padrões inatingíveis que têm levado inúmeras pessoas a adotar medidas extremas e perigosas para se encaixar em um ideal de beleza que, na realidade, é artificial e frequentemente manipulado.

O impacto dessa busca incessante por um corpo perfeito é preocupante. Procedimentos cirúrgicos, dietas radicais e o uso de produtos químicos nocivos são apenas algumas das práticas adotadas por aqueles que desejam atingir esses padrões estéticos irreais. A morte de um jovem esta semana, após um procedimento estético com fenol, é o mais triste recente exemplo dos extremos a que as pessoas são induzidas. Temos uma vida perdida a deplorar, uma a mais.

Mas o problema não reside apenas nos riscos físicos, como as complicações cirúrgicas, distúrbios alimentares e danos permanentes à saúde. Há também um impacto psicológico profundo, que se manifesta em baixa autoestima, isolamento social, ansiedade, depressão e até suicídio.

Pois o que é a beleza? A filosofia, historicamente, traz diversas reflexões sobre esse conceito. Platão argumentava que a beleza é uma forma de verdade que nos leva a um amor transcendente e divino: “A beleza é o esplendor da verdade,” disse ele. N’O banquete, seu célebre diálogo sobre o amor, ele mostra como uma askesis, uma elevação ou ascese, nos conduz do amor físico até o espiritual. Já Nietzsche, embora tão oposto a Platão, criticou a conformidade e a busca pela aprovação social, sugerindo que a verdadeira beleza e autenticidade surgem quando nos libertamos das expectativas externas: “Torna-te quem tu és.” Nos dois casos, vale a pena notar que a beleza não está na imagem corporal, mas em algo mais profundo – a superação das aparências, no caso corpóreas, no primeiro caso, a vitória sobre as expectativas impostas de fora para dentro, no segundo.

Porém, longe das reflexões intelectuais, em nosso mundo cotidiano, os padrões de beleza têm sido moldados pelos interesses do mercado. Uma pequena boneca, lançada nos anos 50 nos Estados Unidos, foi por décadas “tudo o que uma menina queria ser”: loira, alta, longilínea, olhos azuis, cintura absurdamente fina, Barbie conseguia tudo em seu universo cor-de-rosa e luxuoso. Ela foi um fenômeno mundial, mesmo onde sua figura era o oposto total do padrão local. Ressurgida em um sucesso de bilheterias ano passado, a boneca de proporções irreais mostra que seu apelo não ficou no passado, e ainda é referência para muitas e muitos jovens que perseguem um ideal impossível de corpo e de vida – isso, embora o filme ironize, com doses até de sarcasmo, justamente esse mito.

As redes sociais, com toda a sua força e impacto, têm hoje um papel imenso na perpetuação desses padrões estéticos. A edição exagerada de imagens, filtros e a constante exibição de vidas aparentemente perfeitas impõem uma pressão social que leva muitos a acreditar que sua felicidade e aceitação dependem de sua aparência física e de uma estética cotidiana plasticamente calculada. Essa pressão, muitas vezes, é agravada pelo consumo de conteúdo que glorifica o sofrimento e a privação em nome da beleza, os influencers e suas vidas fabricadas. O falecido psiquiatra Flavio Gikovate, aliás, foi um dos primeiros a dizer que as redes sociais traziam muita infelicidade – ao exibir pessoas de uma beleza por vezes irreal, em locações maravilhosas, davam (e dão) ao seguidor a sensação de que a vida deste não vale nada, de que jamais chegará ao nível dos influenciadores.

A indústria da moda e da beleza é, obviamente, a que mais capitaliza em cima dessas inseguranças, oferecendo a seus ávidos consumidores todos os tipos de produtos e tratamentos que prometem transformações milagrosas, cenários perfeitos, status e felicidade. Promessas ilusórias que alimentam uma outra indústria: a dos antidepressivos e ansiolíticos.

A busca por padrões estéticos inatingíveis, dessa forma, traz à tona muitas questões éticas. Esse culto ao visual tem um impacto profundo na autoestima e saúde mental, especialmente entre os jovens. E, por isso, é essencial discutirmos a responsabilidade dos influenciadores, das marcas e da mídia e cobrarmos deles que promovam uma imagem mais saudável e realista de beleza. Campanhas para valorizar a diversidade de corpos e características, celebrando a individualidade e a autenticidade ao invés de um modelo único e restritivo de perfeição, têm sido fortalecidas, mas não possuem ainda o mesmo sex-appeal daqueles mágicos filtros instagramáveis e da nova queridinha dos padrões impossíveis: a Inteligência Artificial. Por sinal, já se espalham pelas redes, em especial o Instagram, beldades geradas pela IA, tão formosas – e irreais – quanto as modelos ou atores/atrizes que povoam o imaginário de tantas pessoas.

É possível fugirmos dessa tirania e promovermos um ambiente onde a beleza verdadeira seja reconhecida na diversidade e onde o bem-estar físico e mental prevaleça? Como sociedade, nosso papel deve ser o de promover uma cultura de aceitação e bem-estar, na qual a saúde e a felicidade sejam priorizadas sobre a aparência. Afinal, a beleza não deve ser um fardo, um castigo ou uma meta inalcançável. Bonito é ser, simplesmente.

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

 

Veja as notas do Especial da Semana – A busca pela beleza inatingível

G1, 22/11/2023 – Cirurgias de plástica facial aumentaram mais de 300% no País

Jornal da USP, 11/01/2021 – Cresce em mais de 140% o número de procedimentos estéticos em jovens

Estado de Minas, 10/10/2023 – Homens representam 35% dos pacientes que procuram por cirurgias plásticas

Veja, 09/05/2024 – Body shaming: por que os médicos devem impor limites à pressão estética

CNN Brasil, 06/06/2024 – O caso do peeling de fenol e os riscos do excesso com procedimentos estéticos

Correio do Povo, 12/12/2023 – Pressão estética: quem se beneficia com a insegurança das mulheres?

UOL, 30/05/2024 – Passa horas nas redes? Uso pode aumentar desejo de intervenções estética

GShow, 05/08/2023 – Influenciadores criados por IA: a tecnologia reforça ‘padrões de beleza’ prejudiciais?

iG, 25/06/2023 – Busca pelo “corpo ideal” pode impactar negativamente na saúde mental

Valor, 27/03/2024 – Padrões estéticos afetam carreira das mulheres, indica pesquisa

Jornal da USP, 27/06/2023 – Um a cada três diagnosticados com anorexia nervosa é do sexo masculino

Folha de S. Paulo, 21/07/202 – Barbie marca gerações com busca por um padrão de beleza inatingível

Exame, 31/08/2023 – Fora do padrão é o normal: o corpo médio ideal não existe, e para as marcas isso é um problema

Folha de S. Paulo, 16/10/2023 – Novas drogas para emagrecer: o impacto do controle social do corpo

UOL, 10/05/2024 – Geração Ozempic: por que voltamos a emagrecer e quais as consequências

Medical Xpress, 11/03/2024 – Dor na busca pela beleza: um em cada oito sofre de dor crônica após cirurgia estética

Estado de Minas, 04/09/2023 – Ditadura da beleza: filmes para questionar padrões e inspirar amor próprio