O fim da ditadura militar no Brasil, em 1985, trouxe novas questões ao País. Ao combater democraticamente o autoritarismo, a sociedade percebeu que não havia bases legais que garantissem o direito à vida de cada cidadão. Se o Brasil quisesse mesmo seguir como uma nação que valorizasse seu povo, teria que mudar valores de seu passado, alterar o olhar legislativo que regeu o País por séculos – e, principalmente, construir uma nova Constituição Federal, de forma totalmente democrática.
A saída dos militares do poder foi essencial para que a discussão da substituição da Constituição promulgada em 1967 ganhasse força popular. O Brasil precisava mostrar para o seu povo e para o mundo quais os valores de sua nova articulação popular, de modo a superar também a crise econômica e política que o País vivia na época.
“Lembro-me bem da essência da situação geral do País, na segunda metade da década de 1980, quando finalmente nos livramos da ditadura militar. Havia uma sensação geral de alívio e anseio pela reaquisição da liberdade perdida. No meio acadêmico, a essência dessas lembranças compreendia não só as reivindicações universitárias, mas as de toda a sociedade. Depois das Diretas Já, nossas esperanças se concentravam na Assembleia Nacional Constituinte. Essa esperança foi abraçada pela SBPC que de pronto criou uma Comissão de Estudos para a Constituinte, encarregada de elaborar um documento cuja premissa seria ‘a defesa da liberdade individual e dos direitos humanos de todos os habitantes do território brasileiro’”, contou o médico e professor Erney Plessmann de Camargo, em depoimento ao livro A SBPC e a Constituição Brasileira. (O professor Erney será um dos homenageados na 75ª Reunião Anual, este mês, em Curitiba).
Como a própria obra detalha, a Comissão de Estudos para a Constituinte da SBPC foi formalizada em 1986, sob a coordenação do sociólogo José Albertino Rodrigues, e contou com as colaborações de Aziz Ab´Saber, Milton Santos, Erney P. Camargo, João Célio Brandão, Bolívar Lamounier, Pedro Dallari, Lúcia Maciel, Claudio Mammana e José Antonio Cunha. Uma das maiores conquistas dessa comissão foi a elaboração da Proposta da SBPC para a Constituinte, que foi apresentada na Assembleia Nacional Constituinte em abril de 1987.
“O âmbito da proposta é amplo, incluindo o ensino, a saúde, o espaço territorial e o meio ambiente, as populações indígenas e Ciência e Tecnologia stricto sensu”, introduz o documento idealizado pela SBPC. “Tal amplitude obedeceu ao critério de seu significado crucial para o desenvolvimento do país, e decorre do fato de que, sobre esses temas, a reflexão e o conhecimento científico atingiram entre nós, níveis consentâneos com sua importância. Nos mais variados campos de conhecimento e em diversas reuniões científicas esses problemas estiveram no centro das preocupações que envolvem a questão nacional. Julgamos que, nesses pontos pelo menos, a Constituinte não poderá deixar de ouvir os grupos de pessoas que trabalham nas universidades e nos institutos de pesquisa, dedicando-se integralmente ao seu estudo e investigação”, acrescenta.
Entre os tópicos da proposta, dois se destacam: a educação e a própria Ciência e Tecnologia, como explica a socióloga e professora Fernanda Sobral, também na obra A SBPC e a Constituição Brasileira:
“No que se refere à educação e ensino, a SBPC endossou o manifesto dos educadores, aprovado na 4ª Conferência Brasileira da Educação, em 1986, e também no Fórum da Educação na Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito, que consagrou o princípio do direito de todos os cidadãos brasileiros à educação, em todos os graus de ensino, e do dever do estado em prover os meios para garantir tais princípios. Também apoiou o princípio de que ‘A educação escolar é um direito de todos os brasileiros e será gratuita e laica nos estabelecimentos públicos, em todos os níveis de ensino’”.
Além do ensino escolar, a proposta da SBPC à Constituinte também reforçava a importância da universidade pública, ou seja, o ensino superior gratuito. Quanto às pautas de Ciência e Tecnologia, havia a responsabilização dos governos na difusão da ciência:
“Sobre Ciência e Tecnologia, o princípio geral postulado pela SBPC era fixar a responsabilidade do Estado na promoção do desenvolvimento científico e de suas aplicações para o desenvolvimento econômico e social do país e o bem-estar da população. Para concretizar esse princípio, deveriam ser mobilizadas as universidades, as instituições de pesquisa, as agências de fomento e as empresas públicas e privadas. Das entidades que constituíram o Fórum Nacional de Educação na Constituinte e que elaboraram propostas específicas, foi a SBPC a que mais reforçou a importância da pesquisa básica (desenvolvida predominantemente nas universidades, mas também nos institutos de pesquisa). Nessa perspectiva, a pesquisa básica autônoma, ditada sobretudo pelos princípios de descoberta e validação, feita majoritariamente na universidade e com financiamento público, teria mais condições de dar contribuições, a longo prazo, à superação da dependência do país. Ao seu lado, desenvolver-se-ia a pesquisa aplicada em universidades, institutos de pesquisa e empresas, buscando soluções para os problemas nacionais, pois sem o ciclo completo de conhecimento e sem a produção de conceitos e teorias através da pesquisa básica não se produzem tecnologias inovadoras e adequadas às necessidades nacionais.”
Após a entrega da proposta, a SBPC começou a trabalhar na divulgação e circulação de emendas populares, que precisariam de assinaturas para serem debatidas no campo legislativo. Um exemplo foi a emenda da educação, que foi incluída na Constituição Federal após o trabalho de 10 entidades, que conseguiram, juntas, 279 mil assinaturas.
Direitos plurais
Mas nem todas as pautas transitaram abertamente no debate democrático e/ou receberam apoio popular. Um dos temas mais atacados foram os direitos dos povos indígenas, que, inclusive, ganhou uma grande campanha contra o seu reconhecimento, como explica a antropóloga e professora Manuela Carneiro da Cunha, também na obra A SBPC e a Constituição Brasileira:
“Em um momento crucial da Constituinte, jornais importantes de várias capitais estamparam em extensas matérias de capa, seguidamente, durante muitos dias, o que hoje se chamaria de fake news. Alegavam uma conspiração internacional para impedir a lavra de minérios no Brasil ao resguardar as terras indígenas da exploração minerária e citavam a perspectiva de haver cassiterita em terras Yanomami, em Roraima. Acusavam as várias organizações que defendiam os índios de serem agentes dessa conspiração.”
Como detalha a especialista, desde a década de 1970, os indígenas, principalmente da Amazônia, passaram a sofrer diferentes ataques no campo político. Tudo porque o governo militar tomou as rédeas da política indigenista e só tocava projetos que tivessem relação com sua visão de “desenvolvimento”. Para se ter uma ideia, em 1978 chegou a se debater o “Decreto da Emancipação”, que visava definir o “índio emancipado”, ou seja, aquele que dispunha de direitos civis, o que seria somente concedido àqueles que “já se estariam conformando aos costumes da maioria dos brasileiros”. Resumidamente, o indígena que ainda vivia conforme suas tradições não seria considerado “cidadão” na perspectiva dos direitos civis.
Os debates dos direitos indígenas durante a Constituinte, além de respingarem nessa visão política, também sofriam com os interesses empresariais na exploração de suas terras. As campanhas da imprensa contra os indígenas e povos originários surtiram efeito e o texto que garantia a proteção a eles foi totalmente desconfigurado. Até que um discurso emblemático entrou em campo.
No dia 04 de setembro de 1987, o líder indígena Ailton Krenak fez uma fala na Assembleia Nacional Constituinte, que marcou a história da política brasileira. Durante o ato, Krenak foi pintando o seu rosto com tintura de jenipapo, para denunciar as injustiças contra as populações indígenas, inclusive a forma como vinham sendo tratadas por aquele parlamento. O espaço de fala ocupado pelo líder indígena foi cedido pela SBPC, pela ABA (Associação Brasileira de Antropologia) e pela CONAGE (Coordenação Nacional dos Geólogos), instituições que assinaram e coordenaram a Emenda Popular nº 40, que tratava dos direitos dos indígenas.
“Creio que nenhum dos senhores poderia jamais apontar atos, atitudes da gente indígena do Brasil, que colocaram em risco, seja a vida, seja o patrimônio de qualquer pessoa, de qualquer grupo humano neste País. Hoje somos alvo de uma agressão que pretende atingir, na essência, a nossa fé, a nossa confiança. Ainda existe dignidade, ainda é possível construir uma sociedade que saiba respeitar os mais fracos, que saiba respeitar aqueles que não têm dinheiro, mas, mesmo assim, mantém uma campanha incessante de difamação. Um povo que viveu sempre à revelia de todas as riquezas, um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser, de forma nenhuma, contra os interesses do Brasil ou que coloca em risco qualquer desenvolvimento. O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil. Vossas Excelências são testemunhas disso”, disse Krenak, à época.
A emenda dos direitos indígenas alcançou assinaturas suficientes e foi incorporada ao texto constitucional.
Ao todo, as propostas criadas pela SBPC foram incluídas nos capítulos da Constituição Federal que abordam educação, meio-ambiente e ciência e tecnologia. A entidade também reuniu assinaturas e aprovou duas Emendas Populares, a que defende os direitos das populações indígenas, já citada, e a que proíbe a produção e o transporte de armas nucleares no Brasil.
Mas mesmo promulgada, em 1988, a Constituição Nacional é tema de debates constantes. Na década de 1990, a SBPC encabeçou a luta pelas agências financiadoras estaduais e a sua inclusão nas constituições estaduais; em 2015, a entidade lutou pelo aprimoramento da Constituição Nacional por meio da Emenda Constitucional 85/2015, que possibilita à área de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) fazer remanejamentos e transferência de verbas entre rubricas orçamentárias; e em 2021, em plena pandemia de covid-19, houve a aprovação da Lei Complementar nº 177, que proíbe bloqueios no Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).
Como explicam os organizadores da obra “A SBPC e a Constituição Brasileira”, Ildeu de Castro Moreira, Bruno de Andrea Roma e Áurea Gil, o papel da entidade na aprovação da Carta Magna trouxe uma batalha que se mantém até os dias de hoje: “a divulgação da importância do financiamento à Ciência e Tecnologia e a luta por esses recursos”.
75 anos de memórias
Esta reportagem é parte de uma série especial para os 75 anos da SBPC, que serão comemorados no próximo sábado, dia 8 de julho.
A matéria também utilizou apuração do Centro de Memória da SBPC e trechos da obra “A SBPC e a Constituição Brasileira”, organizada por Ildeu de Castro Moreira, Bruno de Andrea Roma e Áurea Gil e que está disponível para download gratuito no site da SBPC.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência