João sai a pedido da mãe para vender um cavalo e comprar comida, mas é interceptado por alguém que o convence a trocar o cavalo por um pé de feijões mágicos que, após brotado e crescido, daria dinheiro. João plantou a muda e o que nasceu e cresceu, claro, foi um grande pé de feijão. Ou seja, João foi vítima de uma fake news.
Esta é, em resumo, a abordagem do Episódio 1 do podcast “Crianças falando de fake news para crianças” produzido e narrado por alunos de 5º ano participantes do “Conexão Escola Mundo”, um projeto colaborativo envolvendo uma rede de pesquisadores multi e interdisciplinar para ação e reflexão em torno da alfabetização midiática.
O projeto, iniciado em 2017, nasceu da parceria entre pesquisadores na área de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a partir de uma metodologia de “intervenção” nas escolas, levando os alunos a avançarem da “contemplação e consumo” para a “participação e coautoria”, segundo definição publicada no site do projeto.
Fazem parte do Conexão Escola Mundo alunos do Instituto Isaías Alves (CPIA), de Salvador, e do Colégio de Aplicação, da UFSC em Florianópolis. A proposta não é “ensinar a lidar com fake news”, mas sim promover o que o professor Daniel Pinheiro, do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), integrante do projeto, chama de “educação hacker”.
“Trabalhamos a questão das fake news, do cyber bullying a partir, não de palestras, de oficinas para entender como se defender, de como lidar com isso, mas exatamente do contrário: de como ocupar, construir com os estudantes os entendimentos mínimos a respeito do que é ‘mimimi’ e do que seriam, na verdade, direitos humanos, diversidade.
E depois disso, fazer podcasts, vídeos”, explica Pinheiro. Ele complementa: “É uma postura muito mais proativa de produção de conteúdo e de entender as lógicas de operação dessas máquinas, dessas redes, porque isso é que vai permitir ao sujeito se apropriar da tecnologia que ele quiser de uma maneira que seja crítica e criativa.”
A educação para o uso da internet e das redes sociais tornou-se um dos maiores desafios dos pais e educadores, não apenas para proteger as crianças e jovens dos conteúdos desinformantes, carregados, muitas vezes, de ódio, preconceito e abusos, mas também formá-los para atender às exigências de um mundo ultraconectado.
A pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024, divulgada no último dia 23 de outubro, mostrou que elas recebem o triplo de ofensas que pensam seus pais. O levantamento foi realizado pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto.br (NIC.br) junto a crianças e adolescentes entre 9 e 15 anos e os seus responsáveis.
Questões sobre educação midiática não são novas e na verdade já haviam sido levantadas nos anos 1920 pelo pedagogo francês Célestin Freinet (1896-1966), destaca a jornalista Januária Cristina Alves, membro da Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação (ABPEducom) e da Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).
“Os educadores começaram a pensar nisso já há algum tempo, em como se ensina e se aprende a ler esses meios de comunicação que nos trazem sempre uma verdade editada, um mundo recortado e selecionado pelos jornalistas, pelos editores.
UM TEMA PARA TODOS
Para Januária Cristina Alves, a formação nessa área é um tema para todos, não só para os pais e professores, e deveria estar em todos os lugares: nas bibliotecas, nos centros de cultura, blogs, vídeos e podcasts.
Ela lembra que o público 60+, por exemplo, é a maior vítima de fake News e golpes virtuais porque são de uma faixa etária que não nasceu com a tecnologia na mão, têm dificuldade de entender como os dispositivos e aplicativos funcionam e, na visão dela, também deveriam ser alvo de educação midiática.
Os jovens, por outro lado, diz Alves, embora tenham maior familiaridade com a tecnologia, são mais abertos a teorias conspiratórias por estarem na idade de formar o seu próprio pensamento. “Quando eles ouvem uma teoria conspiratória, do tipo ‘a Terra é plana’, e por algum motivo confirma uma crença que eles já tinham, é com ela que eles vão ficar, é o chamado viés de confirmação”, afirma e completa: “Portanto, saber operar (a tecnologia) não quer dizer muita coisa.
O PAPEL DA ESCOLA
Alves ressalta que a forma como a educação midiática e para redes sociais foi implementada no País começou com o equívoco de acreditar que bastava um computador em cada escola, para cada aluno. “E o que a gente viu acontecer foi escola com um computador virando lixo, porque não tinha rede, não tinha professor para ensinar’. Atualmente, existe uma Coordenação Geral de Educação Midiática ligada ao Ministério da Educação.
“Eu diria que fazer o trabalho nas escolas ainda não é suficiente, principalmente porque eu costumo dizer que estamos trocando o pneu do carro com ele em movimento”, frisa, lembrando que as mídias estão em rápida transformação com o surgimento da Inteligência Artificial, o que tem obrigado os professores a lidar com trabalhos escritos pelo ChatGPT.”
Dentro do conceito de “educação hacker”, o professor Daniel Pinheiro defende que a educação midiática não deve ser um “puxadinho dentro do currículo”, ou apenas uma disciplina mais. Para ele, a escola é um espaço privilegiado para difusão dos conhecimentos sobre a tecnologia, mas este não necessariamente precisa estar dentro da sala de aula, e essa abertura também se aplica à formação dos professores.
“Temos trabalhado no sentido transversal da formação de professores”, explica. Esses trabalhos utilizam conteúdos relacionados à educomunicação presentes no currículo em todas as dimensões – história, geografia, português, matemática etc. “O professor de educação física, por exemplo, tem que falar sobre o corpo na rede, tem que construir com os estudantes ideais em torno do que é você se projetar na rede.”
Januária Alves acrescenta, citando Paulo Freire, que a educação é o instrumento de leitura do mundo, “a competência das competências”. E que o mundo atual – “líquido, como diz o filósofo Zigmund Baumann” – exige uma base para as crianças e jovens muito firme e estruturada para a navegação em meio à incerteza e confusão. “Daí a importância de a gente educar crianças e jovens para entenderem o funcionamento das mídias, se protegerem dos conteúdos que são nocivos, do preconceito, do ódio, (…) para estarem na internet de uma maneira ética, segura, protegida e sustentável, porque nem tudo o que está lá dentro é ruim”, diz Alves.
ACESSO À INTERNET
Antes de se falar em exposição às redes sociais, no entanto, existe a questão do acesso à internet. Na edição 2023 do relatório Global Education Monitoring Report (GEM Report), a Unesco apontou que a conectividade – considerada instrumento fundamental para garantir o direito à educação – registrou avanços expressivos, mas segue em proporções desiguais de acesso em todo o mundo.
Segundo o relatório, a nível global, apenas 40% das escolas primárias, 50% das escolas de primeiro nível da educação secundária e 65% das escolas de segundo nível da educação secundária estão conectadas à internet.
O relatório também aponta que a tecnologia digital aumentou o acesso a recursos de ensino e aprendizagem, mas muitos estudantes não conseguem utilizar estes recursos em práticas escolares. Mesmo nos países mais ricos do mundo, somente cerca de 10% dos estudantes de 15 anos utilizam aparelhos digitais por mais de uma hora por semana para estudar matemática e ciência, por exemplo.
No Brasil, o acesso foi bastante ampliado depois da pandemia de covid-19 que forçou as aulas online, mas ainda carece de condições para o desempenho dos estudantes. De acordo com o relatório “Panorama da qualidade da internet nas escolas públicas brasileiras”, do Centro de Estudos e Pesquisas em Tecnologia de Redes e Operações (Ceptro.br), a maioria (89%) das escolas públicas brasileiras possui acesso à Internet. No entanto, quando examinados os usos efetivos dessa conexão, a proporção diminui, pois apenas 62% destas escolas têm Internet para aprendizagem e só 29% são providas de equipamentos para acesso às redes pelos alunos.
O estudo estima que apenas 11% das escolas com Ensino Fundamental e Médio tenham planos para velocidade de download por aluno igual ou maior que 1 Mbps/aluno no maior turno, que, segundo Resolução Cenec nº 2 (2024), seria o valor ideal para essas instituições. Cenec é sigla para Comitê Executivo da Estratégia Nacional de Escolas Conectadas.
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Janes Rocha – Jornal da Ciência