Brasil está retomando as políticas de Saúde, mas precisa olhar para situação dos trabalhadores da área

Para especialistas, Governo Federal tem como grande desafio reverter os retrocessos dos últimos seis anos e fortalecer o SUS; medidas são defendidas na "Carta de Curitiba", manifesto público da SBPC em defesa da Democracia

Após seis anos de desmonte das políticas de Saúde, com ênfase nas campanhas de desinformação e descrédito, o Governo Federal está retomando, com rapidez e eficiência, as estruturas do setor. Entretanto, para especialistas, o fortalecimento do SUS (Sistema Único de Saúde) e de demais programas precisa ser acompanhado de uma revisão dos regimes de contratação dos profissionais e de rompimentos burocráticos.

“Esses seis primeiros meses do atual Governo Federal foram meses de retomada da capacidade de colocar a máquina para funcionar de novo, né?”, pondera a professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Rosana Teresa Onocko Campos.

“Considerando não só o Governo Bolsonaro, mas também os anos do Governo Temer, foram períodos de cortes, restrições, de privatizações. Então, eu acho que houve, no primeiro momento, um esforço para retomada de funcionamento. O Ministério da Saúde tem sido bastante rápido para algumas coisas que apontamos que eram urgentes, como a volta do Mais Médicos, o retorno das campanhas de vacinação e ampliação do Plano Nacional de Imunizações e a própria corrida por insumos que estavam acabando, por exemplo, a gente estava sem vacina para tuberculose. Então, são questões técnicas muito importantes e relevantes que têm sido tocadas com bastante celeridade”, completa a especialista.

Outra questão apontada por Rosana Onoko é a redução das filas em diferentes áreas. No campo administrativo, o Ministério da Saúde havia uma lista de solicitações oriundas de estados e municípios, que iam desde pedidos de profissionais para o programa Saúde da Família a insumos médicos. “Havia muitos pedidos de municípios que, se não são atendidos, não tem disponibilidade dos recursos. E isso é muito sério, principalmente para as pequenas prefeituras, que carecem de estruturas de saúde.”

Já o segundo cenário foram programas para diminuição de filas de atendimento no Sistema Único de Saúde. “Só que, nesse caso, a gente ainda tem um dilema. Porque quando você tem que trocar o pneu com o carro andando, como dizemos, é muito difícil você mudar o modelo e acelerar o repasse. Era necessária uma ação que resolvesse a fila de cirurgias eletivas, mas nós temos que estar muito atentos, pois a administração do SUS não pode continuar a ser feita da mesma forma. Para um sistema como o SUS funcionar bem, não bastam os mutirões.”

Segundo a especialista, os mutirões são uma estratégia legítima para zerar filas, mas são necessárias formas de integrar as linhas de cuidado. “A gente sabe que um defeito do sistema brasileiro de Saúde é a falta de coordenação do cuidado pela atenção básica e, ao mesmo tempo, a fragmentação. Em algumas regiões, por exemplo, faltam especialidades, e o ciclo de cuidados da pessoa atendida acaba se perdendo. A gente precisa lembrar que 75% do povo brasileiro só tem o SUS para tratamento de saúde. Então, o SUS é heroico. O SUS é muito bom, mas a gente ainda precisa que ele melhore.”

O fortalecimento do SUS e do próprio Ministério da Saúde também estão presentes na “Carta de Curitiba”, um manifesto público de defesa da democracia “e tudo que ela implica”, elaborado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O documento foi votado e aprovado por unanimidade na Assembleia Geral de Sócios da SBPC, reunida no dia 27 de julho, durante a 75ª Reunião Anual da SBPC.

“A saúde é direito de todos e uma vantagem extraordinária para nosso desenvolvimento. Isso implica não apenas o fortalecimento do SUS como, também, constante atualização na formação dos profissionais da saúde”, destaca a entidade. Confira o documento completo.

Situação dos trabalhadores de saúde precisa ser foco do Ministério

Tema presente na “Carta de Curitiba”, a situação dos profissionais de saúde é também uma prioridade apontada por Rosana Onoko, que alerta para dois panoramas que precisam ser resolvidos pelo Ministério da Saúde. O primeiro, é trazer medidas de amparo a esses profissionais, que já lidavam com estruturas precárias no dia a dia, mas, durante a pandemia de covid-19, tiveram uma sobrecarga de trabalho e uma sobrecarga emocional e social, já que estavam em contato direto com o vírus, colocando-se em risco e colocando entes queridos também.

O segundo ponto envolve diretamente a contratação de profissionais, como o piso salarial e, principalmente, cenários de terceirização. “A gente já tem estudos que mostram que a terceirização traz dificuldades de prestação de contas, o que dá margem para corrupção e, por outro lado, produz uma rotatividade dos trabalhadores de saúde, o que é muito ruim para o trabalho de cuidado, porque as pessoas atendidas pelo SUS precisam conhecer os profissionais que cuidam delas.”

Professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e secretária regional da SBPC no Rio de Janeiro, Ligia Bahia concorda que a situação contratual dos profissionais de saúde é uma demanda urgente da pasta ministerial, e lista outras prioridades: “Inúmeras demandas são urgentes no setor, desde políticas para a contratação de pessoal com carreiras e remuneração dignas, até a efetiva inclusão de medicamentos e vacinas na rotina das unidades da rede SUS.  São demandas acumuladas desde décadas, um processo que reflete uma reforma do sistema de saúde ainda inconclusa. A melhor notícia é saber que, agora, as autoridades sanitárias saberão orientar ações e programas que sejam estratégias-ponte direcionados para abordagens de curto prazo que mirem mudanças estruturais.”

Em 2022, a SBPC realizou uma série de seminários online do “Projeto para um Brasil Novo”, que buscou apontar prioridades a serem realizadas no próximo Governo Federal em diversas frentes. O debate sobre as políticas de saúde contou com as participações das especialistas Rosana Onoko e Lígia Bahia. Na época, além da defesa ao SUS, os especialistas chegaram à conclusão de que o Ministério da Saúde tinha que atuar com outras pastas, como a de Ciência, Tecnologia e Inovação e a do Meio Ambiente, um desafio para os dias de hoje.

“Eu tenho a impressão de que este Governo Federal está com bastante articulação interministerial. Agora, o problema é que falar de articulação e integração é mais fácil do que fazer. Porque na máquina do Estado, indiretamente, a execução de algumas coisas cabe sempre a só um ministério, a verba vai sair por um ministério ou por outro. A gente não tem, até agora, instâncias interministeriais que sejam executoras de despesas, por exemplo. E isso é um problema, porque você acaba querendo integrar ideias e princípios, mas na hora de executar, entra para duas máquinas diferentes”, analisou Rosana Onoko.

Já Bahia concorda que existem problemas estruturais, e destaca a importância da participação da sociedade neste processo. “Nós temos um desafio enorme pela frente para reinserir o Brasil em um mapa que conjugue bem-estar, democracia e descarbonização. A saúde tem o que dizer e pode se constituir em vetor virtuoso de investimentos integrados.  Superar a fragmentação setorial, disciplinar e institucional é um desafio contornável. No entanto, as ferramentas para um trabalho articulado precisam ser construídas, ainda não estão disponíveis. Nós da SBPC podemos e devemos ‘meter a colher’, sugerindo fóruns de debates e formulação de políticas sociais voltadas à melhoria das condições de vida em sintonia com ritmos e ciclos da natureza.”

Rafael Revadam – Jornal da Ciência