O Grupo de Trabalho do Código Florestal (GTCF), instituído pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), divulga carta de repúdio às declarações do ministro Gilmar Mendes durante o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade requerida pela Procuradoria Geral da República no Supremo Tribunal Federal (STF).
Durante o seu voto, o ministro questionou a atuação de organizações não governamentais e do Ministério Público em defesa do meio ambiente e afirmou que as posições da comunidade científica, contrárias à redução de Áreas de Preservação Permanente (APPs) considerando o leito médio dos rios, não passavam de “mero achismo”.
Na carta, o GTCF questiona: “É esse tipo de declaração que esperamos de um ministro do STF? É essa declaração que vai sustentar a decisão dos demais ministros na declaração de seus votos?”
A votação foi interrompida na última quinta-feira sem a contagem dos votos pela presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia. O julgamento deverá ser encerrado nesta quarta-feira, 28 de fevereiro, com o voto do decano da Casa, o ministro Celso de Mello, magistrado que tem “demonstrado coerência nas suas decisões, com forte embasamento científico em suas colocações”, como registra o Grupo de Trabalho no documento.
Leia a carta na íntegra:
Código Florestal no STF: achismos não têm espaço em conclusões científicas
Nossa primeira commodity de exportação foi o pau Brasil logo após o descobrimento. Já em 1537, na Carta Floral de Olinda, Duarte Coelho determinou: “E assim árvores de palmo e meio de cesta e daí para riba não cortarão sem minha licença ou dos meus oficiais que por mim tiverem”. Em 1799, foi a vez do matemático e filósofo José Vieira Souto defender a vegetação contra o desmatamento ilegal e, em 1823, José Bonifácio de Andrade e Silva, o Patriarca da Independência, alertou que chegaria um dia no qual a natureza se vingaria de tantos erros e crimes cometidos contra ela. Dom Pedro II nos meados do século XIX desapropriou fazendas do maciço da Tijuca para serem reflorestadas com o intuído de proteger os rios que abasteciam o Rio de Janeiro. Portanto, a preocupação com o meio ambiente não é recente.
Em 1934, em função de grandes áreas desmatadas para plantações de café, o Brasil aprovou o seu primeiro Código Florestal (Decreto no 23.793, de 23.01.1934), que posteriormente, em 1965, foi modificado pela Lei n° 4771, criando um novo Código Florestal que incluía os conceitos inovadores de Área de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL), além de proibir atividades agrícolas em APP. Como não obrigava a restauração florestal nessas áreas de APPs e o sistema de fiscalização era deficiente, os crimes ambientais, principalmente desmatamentos, continuaram ocorrendo sem quaisquer punições.
Mas mesmo assim, vários produtores rurais (sem generalizações) continuaram atuando como se não existisse legislação ambiental, pois a existente, na visão deles, era muito restritiva e isto deu origem a uma nova modificação da lei em 2012 (Lei 12.651), cujo projeto teve como relator o deputado Aldo Rebelo, que escutou a academia no processo de construção, mas não incluiu o conhecimento científico na sua proposta e na votação final recebeu grande apoio do Congresso Nacional, com destaque para a bancada ruralista.
Os ambientalistas e a academia reagiram fortemente à nova proposta, embora admitisse que atualizações poderiam ser feitas no Código Florestal de 1965. Ao invés de haver uma tentativa de acordo entre ruralistas e ambientalistas, sustentado pelo conhecimento científico, o que se viu foi uma ruptura dos dois setores, que se estendeu além dos muros do Congresso Nacional e chegou a envolver grande parte da população brasileira, mas que não conseguiu digerir as informações técnicas necessárias para uma discussão pública ampla do tema. A atualização do Código Florestal era necessária, pois a população havia mais que duplicado, novos avanços científicos e tecnológicos mostravam a interdependência do setor produtivo e ambiental e a necessidade de se produzir com sustentabilidade ambiental, o que poderia ser facilmente regrado com uma boa atualização da lei ambiental, incorporando o conhecimento científico disponível nesse momento.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia Brasileira de Ciências (SBPC/ABC) criaram um grupo de trabalho do Código Florestal (GTCF) composto por professores/cientistas/pesquisadores das várias instituições em áreas relacionadas ao Código Florestal e durante quase dois anos estudaram detalhadamente o assunto, sendo que em 2011 publicaram o livro “O Código Florestal e a ciência: contribuições para o diálogo”, que foi enviado a todos os congressistas. Nesse livro fica claro que a atualização da lei era possível e necessária, mas que essas alterações deveriam ser feitas suportadas no conhecimento científico disponível, em função da interdependência do setor ambiental e produtivo e da possibilidade dessas questões caminharem juntas, com ganho para todos. Os representantes do GTCF continuaram atuando participando das audiências públicas na Câmara dos Deputados e no Senado, sempre alertando sobre a existência de conhecimento científico suficiente para delinear as alterações da lei, sempre demonstrando os ganhos tanto do setor produtivo, como do ambiental nesse processo integrado. Em 2012, esse livro teve uma segunda edição revisada e atualizada e foi agraciado com o Troféu Muriqui concedido pela Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Além desse grupo, várias outras instituições de pesquisa, organizações não governamentais explicitaram a necessidade de se considerar o conhecimento científico nas alterações da lei. Infelizmente, nada disto foi considerado pelo legislativo na aprovação da nova lei (Lei n0 12651, em 25 de maio de 2012), intitulada Lei de Proteção da Vegetação Brasileira, mais conhecida como Novo Código Florestal, o que representou a cisão da bancada ruralista com a ambientalista no Congresso, que não ouviu a ciência, que repetidamente defendia a interdependência desses temas.
Vale salientar que na nova lei foram mantidos alguns conceitos como APPs, RLs, Planos de Manejo Florestal Sustentável (PMFS) e outros foram incluídos, destacando-se o Cadastro Ambiental Rural (CAR), o Programa de Recuperação Ambiental (PRA), a possibilidade de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA), que, se definidos corretamente, com conceitos e valores definidos pela Ciência – o que não ocorreu na nova lei – poderiam ser um excelente instrumento de planejamento ambiental e agrícola da propriedade rural, condicionando a expansão do agronegócio de forma sustentável ambientalmente.
Ou seja, o que vimos na discussão dessa lei foi a radicalização do embate rural e ambiental, impedindo o diálogo e a construção de uma agenda convergente rumo à sustentabilidade social, econômica e ambiental da agricultura brasileira.
Após a aprovação da Lei n° 12651, as discussões continuaram e, em função dos retrocessos da nova lei, três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs) foram colocadas no Supremo Tribunal Federal (STF), que teve como relator o ministro Luiz Fux. Foram realizadas novas audiências públicas para discutir essas ADINS, que ocorreram em meados de 2017. Novamente a academia participou desse processo reforçando mais uma vez a necessidade, agora do STF, de considerar o conhecimento científico nessa revisão. O legislativo ignorar o conhecimento científico em suas decisões é até compreensível, mas não aceitável, dado o jogo político do poder. Mas isso acontecer no STF certamente não é desejável e muito menos aceitável dada a responsabilidade dessa instância de decisão. Por mais estranho que pareça, o relator das ADINS não convidou para as audiências públicas as duas maiores representantes da comunidade científica brasileira (ABC e SBPC), apesar da presidência da SBPC ter encaminhado uma mensagem ao relator indicando os nomes de representantes dessas entidades que deveriam representá-las na audiência, mas infelizmente, essa solicitação não foi atendida.
Como pode o STF não considerar na discussão das ADINS o conhecimento científico já disponível sobre esses temas? Conhecimento esse já amplamente divulgado e debatido, mostrando que as alterações feitas na nova lei precisam ser revistas, pois muitas vão causar sérios danos ambientais, mas também ao sistema produtivo, em função da interdependência desses temas na paisagem.
Isso fica claro na declaração do ministro Gilmar Mendes, que foi recebida como esdrúxula pela comunidade científica. Ele afirmou, baseando-se no relatório do deputado Aldo Rebelo, que as posições da comunidade científica contrárias à redução de APPs considerando o leito médio dos rios não passavam de “mero achismo” e questionou a atuação de organizações não governamentais e do Ministério Público na defesa do meio ambiente. É esse tipo de declaração que esperamos de um ministro do STF? É essa declaração que vai sustentar a decisão dos demais ministros na declaração de seus votos?
O GTCF se sente injustiçado pelas declarações do ministro Gilmar Mendes, pois pesquisadores representando as duas instituições que congregam os maiores expoentes da ciência brasileira jamais fariam declarações científicas com base em “achismos”. Caso o ministro ainda desconheça os argumentos científicos defendidos e publicados pela SBPC/ABC ainda é tempo dessa atualização científica, pois o livro e centenas de artigos técnico-científicos sobre o tema estão disponíveis no site da SBPC (http://portal.sbpcnet.org.br/publicacoes/codigo-florestal/) e nos demais sites de revistas científicas, de laboratórios de pesquisas, etc., que discutem e divulgam conhecimento científico de qualidade.
Ainda existe tempo hábil para uma reversão desse quadro dentro do STF e contamos muito com a fala e a posição que deverá ser defendida pelo ministro Celso de Mello, na condição de último ministro que ainda discutirá as ADINS, pois o ministro Celso de Mello sempre demonstrou coerência nas suas decisões no Supremo, suportadas num forte embasamento científico das suas colocações.
São Paulo, 25 de fevereiro de 2018.
José Antônio Aleixo da Silva – Professor Titular da UFRPE, PhD e Post-Doctor em Biometria e Manejo Florestal (University of Georgia-USA), Coordenador do GTFL.
Helena Bonciani Nader – Professora Titular da Unifesp, Doutora em Biologia Molecular (USP), Presidente de Honra da SBPC.
Antonio Donato Nobre – Pesquisador do Inpa/Inpe – PhD em Ciências da Terra (UNH – USA).
Carlos Alfredo Joly – Professor Titular da Unicamp – PhD em Ecofisiologia Vegetal (University of Saint Andrews, Escócia), Post-Doctor (Universität Bern, Suíça).
Carlos Afonso Nobre – Pesquisador do INPE, PhD em Meteorologia (MIT-USA), Post-Doctor (University of Maryland – USA).
Celso Vainer Manzatto – Pesquisador da Embrapa – Meio Ambiente – Doutor em Produção Vegetal (Universidade Estadual do Norte Fluminense).
Jean Paul Metzger – Professor Titular da IB/USP, Doutor em Ecologia (Université Toulouse III Paul Sabatier, França).
Ladislau Araújo Skorupa – Pesquisador da Embrapa Meio Ambiente – Doutor em Ciências Biológicas (Universidade de São Paulo).
Manuela Carneiro Cunha – Professora Titular Aposentada da USP e da Universidade de Chicago, Doutora em Ciências Sociais (Unicamp), Post-Doctor (Cambridge University).
Peter Herman May – Professor Titular da UFRRJ, PhD em Economia dos Recursos Naturais (Cornell University).
Ricardo Ribeiro Rodrigues – Professor Titular da Esalq/USP, Doutor em Biologia Vegetal (Unicamp).
Sergius Gandolfi – Professor Livre Docente da USP, Doutor em Biologia Vegetal (Unicamp).
Tatiana Deane de Abreu Sá – Pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental, Doutora em Biologia Vegetal (Unicamp).
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