Divulgação científica ganha mais relevância diante da quantidade de pesquisas sobre o coronavírus

Circulação qualificada do conhecimento entre a população é necessária para que se elenquem estudos relevantes e se combata a desinformação. "Estamos em um momento de recuperação da autoridade científica, e a divulgação tem um papel importante nisso", afirma Fernanda Sobral, vice-presidente da SBPC, em reportagem do Jornal da Universidade da UFRGS

Se a divulgação científica já era importante para levar a ciência para além das páginas das revistas acadêmicas e dos muros das instituições de pesquisa, com a pandemia ela se tornou ainda mais essencial para elencar os estudos relevantes e combater a desinformação. Vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Fernanda Sobral afirma que o coronavírus fez com que as pessoas se interessassem mais pela produção acadêmica, pois entenderam que precisam da ciência para conter a pandemia. Colaboradora sênior do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), a professora aposentada avalia que, antes da pandemia, o movimento de crítica e de negação da produção acadêmica, que chamou de “niilismo da ciência”, era maior.

“Agora, estamos em um momento de recuperação da autoridade científica, e a divulgação tem um papel importante nisso. Tenho visto pessoas que não são da área científica discutindo sobre a vacina da Rússia, falando que não tem publicação sobre, por isso não é baseada em resultados e evidências científicas. Pessoas leigas estão conhecendo como se faz ciência.”

Fernanda Sobral

Esse é um tipo de conhecimento prioritário para o Brasil, do qual 93% dos jovens não souberam citar o nome de um cientista e 87% não conseguiram informar ao menos o nome de uma instituição nacional de pesquisa, conforme levantamento realizado no ano passado pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e da Tecnologia (INCT-CPCT). “Eu acredito que se essa pesquisa for repetida agora, com a ciência em maior evidência na mídia por causa da pandemia, o cenário pode ser mais favorável, pois chegamos a ver quatro cientistas falando nos primeiros 10 minutos do Jornal Nacional. Acho que isso nunca aconteceu na história”, comenta a jornalista Sabine Righetti, coordenadora da agência de divulgação científica Bori.

Realizada com 2.206 pessoas com idades entre 15 e 24 anos de todo o país, a pesquisa também mostrou que 68% dos entrevistados disseram achar impossível ou difícil identificar se uma notícia relacionada à ciência é verdadeira. “Isso é um grande problema, porque eu vejo que os jornalistas às vezes passam mais tempo desmentindo ou explicando informações sobre o coronavírus do que divulgando os resultados de novas pesquisas científicas. Há informações erradas partindo inclusive de órgãos públicos, o que confunde a população e tira o tempo da divulgação científica”, lamenta Sabine.

Criada em fevereiro deste ano com objetivo de aumentar a presença da ciência na mídia, a Bori já antecipou 104 estudos inéditos à imprensa e mantém um guia de fontes com o telefone celular de mais de 400 pesquisadores que podem dar entrevistas sobre diversos assuntos relacionados ao coronavírus. “Antes de desenhar a Bori, em 2019, fizemos uma pesquisa com 140 jornalistas, que disseram que tinham dificuldade de encontrar estudos e, quando encontravam, era ainda mais difícil conseguir falar com os pesquisadores. Além disso, devido ao volume de estudos publicados diariamente no país – mais de 230 por dia, fora preprints –, os jornalistas sentem dificuldade de elencar quais são os mais relevantes, diferenciar um estudo pequeno do que é o ‘pulo do gato’”, relata.

Em relação ao volume e à relevância das pesquisas, a jornalista Jaqueline Sordi, do projeto Lupa na Ciência, que analisa artigos acadêmicos sobre a covid-19, afirma que a aceleração da produção científica por causa da pandemia apresenta o risco de “passar por cima” do rigor metodológico e chegar a conclusões precipitadas, como no caso da cloroquina. “Um dos primeiros estudos publicados em uma revista de peso sobre a droga, indicando que ela seria positiva no tratamento da covid-19, tinha erros que passaram despercebidos. Logo esses erros foram corrigidos, mas o processo gerou confusão no público em geral, o que pode levar a uma perda de confiança na ciência. Isso colaborou para grupos que têm interesses em deslegitimar esse campo, como os propagadores de fake news”, exemplifica.

Divulgação é uma forma de democratizar a ciência

Doutoranda em comunicação na UFRGS, Jaqueline leva viva na memória a afirmação de que “uma pesquisa só termina quando ela alcança a comunidade”, ouvida durante um congresso. Para ela, a frase resume de forma simples e sucinta o que considera um dos principais problemas da academia: “Perceber que o valor da ciência está também no seu papel social”. Ou seja, “precisa alcançar a população”, nas palavras da pesquisadora.

“Existe um abismo entre a produção científica e a sua divulgação para além do universo acadêmico. Pesquisadores são, desde cedo, incentivados a produzir artigos para publicar em revistas especializadas. No entanto, esse tipo de publicação, por ser muito técnica, não alcança o público em geral. Jornalistas, por outro lado, são atropelados pelas rotinas de produção, por isso acabam se afastando de temas complexos que demandam tempo, reflexão e aprofundamento.”

Jaqueline Sordi 

Para a jornalista, iniciativas de divulgação acadêmica como a Lupa na Ciência são fundamentais para a democratização científica. “Elas são calcadas no princípio de aproximar a comunidade da produção científica, descomplicando a ciência e mostrando que o conhecimento é para todos. Trabalhando especificamente na divulgação de pesquisas sobre o novo coronavírus, percebi que existe uma grande dificuldade de a população entender como se dá o processo de produção científica, quais suas contribuições e também limitações”, afirma.

A pesquisadora atribui essa dificuldade a dois fatores principais. O primeiro, segundo ela, é que a formação acadêmica e profissional parte, na maioria das vezes, de premissas cartesianas. “Conteúdos são estudados de forma separada, sem que se estabeleça uma relação entre as diferentes áreas do conhecimento. Isso prejudica nossa compreensão e a busca de soluções para fenômenos naturais e sociais”, explica. Já o segundo fator, de acordo com a pesquisadora, é que os leitores preferem manchetes definitivas. “Queremos saber se a cloroquina funciona ou não. Se o uso de máscara evita o contágio ou não. Pesquisas únicas não trarão essas respostas. Na maioria das vezes, é preciso que estudos, focados em diferentes elementos de um fenômeno, se somem para que a comunidade chegue a consensos. Isso demanda tempo, reflexão e aprofundamento acadêmico”, completa.

Cortes na ciência prejudicam divulgação

Com o atual cenário de cortes orçamentários para a ciência no Brasil, a divulgação está ainda mais desassistida, segundo a SBPC. “Faltam verbas para fazer a própria pesquisa, não há recursos para a divulgação. Estamos agora lutando no Senado pelo descontingenciamento do FNDCT [Fundo Nacional para Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. As universidades e instituições de pesquisa precisam ter pessoas especializadas na divulgação científica, profissionais capacitados”, afirma Fernanda.

No entanto, conforme Sabine, muitas vezes o trabalho de divulgar as pesquisas é feito “quando sobra tempo” por pequenas equipes com diversas outras tarefas dentro das instituições, o que prejudica enormemente a qualidade e a efetividade dessas divulgações. “A Bori nasceu graças ao apoio da Fapesp [Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo], mas na linha de apoio tecnológico, não de apoio à divulgação científica. Faltam recursos para isso no Brasil; não temos para onde submeter os projetos, precisamos de oportunidades. Nos Estados Unidos, o EurekAlert! recebe apoio da American Association for the Advancement of Science, a ‘SBPC’ deles”, critica a jornalista.

UFRGS mantém plataforma especializada há quatro anos

Criado em 2016, o site UFRGS Ciência divulga semanalmente notícias sobre pesquisas produzidas na Universidade com uma linguagem acessível e didática. Conforme a vice-secretária de Comunicação, Édina Rocha, o veículo já conquistou reconhecimento no meio acadêmico, sendo muito procurado pelos pesquisadores para a divulgação dos estudos, e tem apresentado crescimento entre os jornalistas, que o usam como fonte de informações.

“Alguns programas de pós-graduação estão tornando obrigatória uma disciplina que contemple a entrega de um resumo em linguagem acessível antes da defesa de teses e dissertações. Isso mostra claramente o interesse e a necessidade desse espaço, já que a atividade científica é a coluna vertebral da Universidade. Produzimos pesquisa de alta relevância tanto em nível nacional quanto internacional e muitas vezes a própria comunidade universitária desconhece o que fazemos.”

Édina Rocha

Os textos do UFRGS Ciência são produzidos pela equipe de jornalismo da Secretaria de Comunicação da Universidade, que recebe sugestões de pesquisas por e-mail e busca estudos relevantes em periódicos e repositórios científicos. Entre as pesquisas que tiveram maior número de acessos na plataforma, estão publicações sobre efeitos da Ritalina no cérebropensamento computacionalexcesso de aminoácidostranstorno bipolar e cuidados com idosos que sofreram AVC.

Jornal da Universidade – UFRGS