EDITORIAL: A lei que castiga as vítimas

Editoria Especial do JC Notícias desta sexta-feira aborda o PL 1904/24, uma proposta que criminaliza o aborto mesmo em casos previstos por lei, transformando vítimas de estupro em criminosas: “Retroceder a esse ponto é não apenas inaceitável, mas perigoso. É uma tentativa de transformar o Brasil em uma distopia real, onde os direitos fundamentais das mulheres são sacrificados em nome de uma moralidade arcaica e desumana”

whatsapp-image-2024-06-21-at-13-29-59O PL 1904/24, conhecido por vários nomes que refletem sua natureza punitiva e cruel – PL do Aborto, PL do Estuprador, PL da Gravidez Infantil -, é uma proposta legislativa que transforma vítimas de estupro que buscam o aborto em criminosas, impondo-lhes penas mais severas do que aquelas aplicadas a seus algozes. Esse projeto de lei equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, mesmo nos casos em que a legislação brasileira permite o procedimento: risco de vida da gestante, estupro e feto anencéfalo. Com esta proposta, retrocedemos mais de 80 anos em nossa casa legislativa, ignorando conquistas históricas e direitos fundamentais das mulheres.

Não podemos esquecer que a maioria esmagadora dos estupros é cometida em casa, por familiares das vítimas – não raras vezes, o padrasto ou até mesmo o pai. Assim, a família, que idealmente seria lugar de amparo e acolhimento, torna-se com alarmante frequência um espaço de tortura, que pode levar até à morte, como aconteceu no caso do pequeno Henry Borel, morto três anos atrás no recesso do que deveria ser seu lar. Contudo, pregadores do ódio preferem desviar os olhos dessas duras realidades. Por isso mesmo, a opinião pública percebeu o projeto de lei como o que ele é: em nome do combate ao aborto, ele protege o estuprador.

Quando foi lançada, em 2017, a série The Handmaid’s Tale (O conto da Aia, na tradução brasileira), baseada no romance distópico de Margaret Atwood, de 1985, mostrava a barbaridade que resta quando uma sociedade sucumbe ao fundamentalismo e regride séculos ao ceifar todos os direitos das mulheres, colocando em prática interpretações misóginas, cruéis e truculentas do Velho Testamento. Violações ao corpo da mulher, desumanização, normalização do estupro… a série era um assustador exemplo a não ser seguido.

Mas mal chegou à televisão sua segunda temporada, entre 2018 e 2019, e a distopia começou a tomar formas reais no Brasil, com ascensão ao poder de uma extrema direita pautada por falsos profetas e infames promessas em nome de Deus e da família. Por sinal, uma vez que estes evocam a tradição judaico-cristã, seria bom lembrar que no livro do Êxodo, está dito que não se deve tomar em vão “o nome do Senhor”, que é precisamente o que eles fazem (Êxodo, cap. 20, versículo 7).

Os ecos dessa virada política ainda ressoam no novo governo, que se encontra em complexos embates com um Congresso ainda fortemente conservador e reacionário.

Talvez devamos entender que, por trás de discursos inflamados sobre o direito à vida e a proteção da inocência das crianças, se esconda algo nefasto. Com efeito, a educação sexual nas escolas permite, com assustadora regularidade, que crianças deem nome ao que sofrem, com desprazer, mas nem sempre entendendo de que se trata: toques impróprios e, mesmo, abusos que chegam ao estupro, à penetração, à gravidez. Não raras vezes, crianças e adolescentes aprendem, graças à educação sexual, a chamar abuso de abuso, estupro de estupro. Dar nome à violência é libertador, mesmo quando é duro, e permite a uma parte das crianças e adolescentes abusadas buscar a proteção legal. Por isso, também, é preciso garantir a escola como espaço de acolhimento, o lugar público como proteção em relação à violência sofrida no âmbito privado. E não é por acaso que a extrema-direita se opõe a todas estas medidas civilizatórias.

Ora, assim, ao invés de discutirmos educação sexual nas escolas, de ampliarmos a rede de saúde que viabilize, dentro dos termos da nossa lei, condições sanitárias dignas e seguras às mulheres que desejam abortar, e de avançarmos na proteção às vítimas de violência sexual – majoritariamente sofridas em suas próprias casas -, nos vemos lutando contra um projeto de lei que transforma essas vítimas em criminosas. Essas mulheres, muitas vezes crianças, que se recusam legitimamente a seguir adiante com uma gravidez traumatizante e violenta, são novamente violentadas pelo sistema.

Esse projeto de lei ignora completamente as realidades sociais e psicológicas das vítimas de estupro, especialmente das meninas que, além do trauma, enfrentam riscos físicos e emocionais ao serem forçadas a manter uma gravidez. Em vez de oferecer amparo e justiça, o PL 1904/24 reforça o ciclo de violência e opressão.

Retroceder a esse ponto é não apenas inaceitável, mas perigoso. É uma tentativa de transformar o Brasil em uma distopia real, onde os direitos fundamentais das mulheres são sacrificados em nome de uma moralidade arcaica e desumana. É crucial que a sociedade se levante contra esse retrocesso, defendendo o direito das mulheres à autonomia sobre seus corpos e suas vidas.

A luta é pela dignidade, pela saúde e pela justiça. Não podemos permitir que o PL 1904/24 avance e se torne lei. Precisamos de políticas públicas que protejam e empoderem as mulheres, não que as condenem. É hora de avançar, não de retroceder.

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

Daniela Klebis, coordenadora de Comunicação da SBPC

 

Leia as notas do Especial da Semana – PL do Aborto

JC Notícias – O PL do estuprador, artigo da advogada Deborah Duprat para o Jornal da Ciência

Jornal da Ciência – SBPC e sociedades científicas afiliadas manifestam repúdio ao “PL pró-estuprador”

Agência Fiocruz, 20/06/2024 – Fiocruz divulga nota de posicionamento contra PL do aborto

ABC – A violação dos direitos humanos e a revitimização das mulheres no PL 1904/2024

Esocite – Esocite divulga nota de repúdio ao PL 1904/24

Folha de S. Paulo, 20/06/2024 – Ação feminina contra maior criminalização do aborto

O Globo, 18/06/2024 – Aborto legal: Federação Internacional de Ginecologia condena restrição no Brasil: ‘antiético e contradiz as evidências médicas’

BBC – Como Conselho Federal de Medicina se tornou pivô dos embates sobre aborto legal no Brasil

Valor, 21/06/2024 – A culpa é da vítima?

Nexo – PL do estuprador: a perversão masculina contra mulheres

DW-Brasil, 18/06/2024 – Oito vezes em que o aborto avançou e retrocedeu no Brasil

Nexo, 19/06/2024 – As dificuldades dos serviços de aborto legal no Brasil

Folha de S. Paulo, 07/03/2024 – Mulheres enfrentam recusa médica e humilhações para acessar aborto legal no Brasil

Veja, 09/05/2024 – Direito ao aborto legal ainda está longe de ser cumprido no Brasil

O Globo, 18/06/2024 – “A criança de 10 anos que engravida tem risco de morte até 5 vezes maior por complicações na gestação”, diz obstetra

UOL – “PL do aborto vai condenar muitas meninas à morte”, diz médico

Agência Brasil, 18/06/2024 – Aborto legal: falhas na rede de apoio penalizam meninas e mulheres

Folha de S. Paulo, 13/06/2024 – Abortos acima de 22 semanas respondem por até um terço das interrupções legais

Gênero e Número, 31/10/2023 – SUS atende 9 de cada 10 internações por aborto no Brasil

Agência Fiocruz, 20/03/2024-Edição da Radis debate a legalização do aborto

Folha de S. Paulo – Dois em cada 3 brasileiros são contra o PL Antiaborto por Estupro, diz Datafolha

Folha de S. Paulo, 18/06/2024 – Meninas com até 14 anos são proporcionalmente as maiores vítimas de violência sexual, mostra Atlas