O período histórico que chamamos de “moderno” — embora muitos prefiram o termo “contemporâneo” — começa no final do século XVIII, marcando uma época de intensas transformações em todas as esferas da vida. Nasce e se fortalece a democracia, dissolvem-se as antigas subordinações clânicas e contesta-se a tradição, valoriza-se o novo. Junto com tudo isso, entramos na era das máquinas, que vão fazer uma mudança gigantesca nas relações humanas. Antes dessa era, a energia disponível no mundo, além da gerada pela água ou pelo vento, dependia de músculos, de grandes mamíferos quadrúpedes ou, lamentavelmente, de pessoas escravizadas. O fim da escravidão, uma grande conquista civilizatória, se deve não apenas ao esforço dos abolicionistas, mas também ao fato de que as máquinas reduziram a necessidade do trabalho físico para gerar a maior parte da energia que necessitamos. Isso resultou em um aumento extraordinário da quantidade de energia disponível e de que precisamos para a melhoria da qualidade das relações humanas e o aumento da expectativa de vida. Nesse contexto, torna-se necessário questionar de qual maneira se produz energia. Nos últimos 200 anos, temos produzido cada vez mais energia, e, nas últimas décadas, a consciência de que ela precisa ser limpa tem crescido substancialmente.
O desenvolvimento das energias renováveis representa, sem sombra de dúvida, um marco na luta global contra o avanço desenfreado das mudanças climáticas e na busca por um futuro mais sustentável. No Brasil, a abundância de possibilidades para alternativas ao petróleo e outros combustíveis fósseis tem atraído olhos ambiciosos de investidores – nacionais e estrangeiros. Somado a isso, a pressão internacional para a efetivação da transição energética tem resultado em projetos implantados de forma cada vez mais acelerada. Porém, nota-se que a corrida para se tornar uma referência global em energias renováveis tem sido marcada por uma abordagem, muitas vezes, afoita e descoordenada.
Essa movimentação, conquanto necessária, esbarra em questões complexas, como os conflitos territoriais e os impactos na biodiversidade. A instalação de grandes usinas e parques eólicos, especialmente no Norte e no Nordeste, tem gerado conflitos territoriais, ameaças à biodiversidade e problemas de saúde para as populações locais. Governadores e investidores veem nesses projetos uma oportunidade de desenvolvimento regional, mas ignoram as vozes das comunidades locais que sofrem as consequências diretas dessa expansão.
O Polo da Borborema, na Paraíba, um exemplo de resistência, luta para manter a produção agroecológica familiar diante da pressão para transformar a região em um polo de energia eólica. O local, que representa um modelo sustentável de produção de alimentos, agora enfrenta a ameaça de se tornar mais um ponto de exploração energética, com impactos profundos para as comunidades locais e o meio ambiente.
A Amazônia, conhecida por sua riqueza biodiversa, tem sido palco de debates intensos sobre a viabilidade das hidrelétricas. A construção de barragens, como a da usina de Belo Monte, no Rio Xingu, exemplifica a dualidade entre o potencial energético e a devastação ambiental. Apesar de gerar energia para milhões de residências, Belo Monte trouxe consequências irreparáveis para as populações indígenas, ribeirinhas e para a fauna aquática, colocando em xeque o real custo-benefício de tais empreendimentos.
Usinas hidrelétricas em áreas tropicais emitem significativas quantidades de gases de efeito estufa, como dióxido de carbono e metano, devido à degradação da vegetação e do solo alagado. Essas emissões foram, por muito tempo, subestimadas ou ignoradas em inventários encomendados pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) ou nos relatórios publicados pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), que frequentemente classificavam a energia hidrelétrica como uma das fontes mais limpas disponíveis no planeta. Isso porque, essas conclusões baseavam-se em estudos realizados fora das regiões tropicais, mas outros estudos, na região Amazônica, demonstraram que as emissões podem ser maiores nessas áreas.
A transição energética é um imperativo; os efeitos catastróficos do uso contínuo de combustíveis fósseis tornam urgente a mudança para fontes limpas. Contudo, a pressa em adotar essas novas tecnologias sem um planejamento robusto e sem considerar os impactos socioambientais pode nos levar a cometer erros tão graves quanto aqueles que tentamos corrigir.
O Brasil tem, hoje, a oportunidade de liderar a transição energética global de maneira responsável. Temos pressa, obviamente, porque a crise climática não espera, mas devemos ter também ciência – no sentido de ter inteligência e método, para contornarmos, de forma eficiente e correta, os efeitos colaterais dessa tão necessária transformação. Se queremos ser lideranças, precisamos ser modelo também de como realizar esse avanço com políticas públicas integradas, que contemplem, não apenas os interesses econômicos, mas, principalmente, a participação das comunidades locais e a preservação dos ecossistemas.
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Veja as notas do Especial da Semana – Efeitos colaterais das energias renováveis
Nexo, 12/08/2024 – Como a transição energética gera conflitos no Brasil
Brasil de Fato, 05/03/2024 – Governadores do Nordeste apostam nas energias renováveis como catalisadoras do desenvolvimento regional
Folha de S. Paulo, 10/08/2024 – Ministério Público e ativistas criticam contratos de eólicas e solares no Nordeste
UOL, 03/07/2022 – Com mais de 8 mil torres eólicas, NE sofre com danos ambientais silenciosos
Portal Amazônia, 11/06/2024 – Usinas hidrelétricas da Amazônia: fontes de energia e de impactos ambientais
DW-Brasil, 11/01/2024 – Sonho da energia verde vira pesadelo para alguns na Caatinga
Nexo, 31/01/2024 – As propostas locais para reduzir os danos de energias renováveis
O Globo, 16/04/2024 – Rumos 2024: transição energética tem impacto social
Folha de S. Paulo, 31/01/2024 – Corrida pela energia limpa no Brasil ‘está longe de ser inofensiva’, dizem movimentos sociais
Folha de S. Paulo, 19/02/2024 – Otimismo com energia limpa esbarra em problemas na matriz brasileira, dizem especialistas
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, 15/07/2024 – Sudene aprova liberação de R$ 92,8 milhões para projetos de energia renovável
ClimaInfo, 31/01/2024 – Investimento em energia renovável bate recorde em 2023, mas não é suficiente para o net-zero
DW-Brasil, 15/08/2024 – Busca por minerais críticos no Brasil impulsiona conflitos
Brasil de Fato, 24/11/2023 – ‘Energias limpas’: uma expressão questionável
Carta Capital, 11/01/2024 – Quão limpas e renováveis são as energias que chamamos de limpas e renováveis?