O futuro da CT&I brasileira na pauta de negociações com o governo

A questão emergencial é a recuperação orçamentária, mas o debate tem que avançar para a criação de grandes programas mobilizadores e estruturantes, afirma o presidente da SBPC, Ildeu Moreira

A recuperação do orçamento público para a área de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) será o tema central do movimento #cienciaocupabrasilia, marcado para os dias 8 e 9 de maio na capital federal. Promovido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em articulação com diversas entidades científicas e acadêmicas nacionais, o evento reunirá instituições de pesquisa, universidades, cientistas, professores, pesquisadores e estudantes de todo o Brasil para chamar a atenção do governo e toda a sociedade para a grave situação do setor e as sérias consequências para o desenvolvimento social e econômico do País.

“Estamos focados neste momento nas ações de curto prazo, pois a situação é realmente grave e emergencial. Mas também queremos definir e reivindicar junto ao governo os grandes programas mobilizadores, estruturantes, que apontem para o médio e longo prazos e coloquem a ciência como um agente de mudanças e desenvolvimento do País”, ressalta o presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira.

Moreira enfatiza que a boa relação do setor com o ministro Marcos Pontes, titular da Pasta da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), abre espaço para que a comunidade científica exponha, além de suas preocupações com o grave impacto do estrangulamento orçamentário, o vigor e o potencial do setor para reverter o cenário de crise do País. “Temos conseguido manter o diálogo todo o tempo. Essa interlocução do ministro com a comunidade científica é muito importante nesse momento. Esperamos que se traduza em ações concretas de recuperação dos recursos para CT&I, como foi prometido a nós pelo atual presidente quando em campanha”, afirma.

Em entrevista ao Jornal da Ciência, representantes de entidades demonstraram partilhar dessa visão. “O ministro tem tomado atitudes corajosas na luta pelo orçamento do MCTIC e também na crítica a posturas anti-ciência”, opina o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Luiz Davidovich. A abertura ao diálogo com o setor é também reconhecida pela líder da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), Andréa Barbosa Gouveia, que qualifica a relação com o ministro de “respeitosa”, enfatizando a “importante mediação da SBPC”.

Miriam Grossi, presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), avalia essa relação como “positiva”, enquanto Flavia Biroli, presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), frisa a “grande abertura da comunidade científica do País para dialogar sobre alternativas”.

Valorização da ciência

Para estes representantes, os cortes orçamentários se constituem em um grande obstáculo para um avanço da CT&I, mesmo com a disposição de diálogo e colaboração. “A recuperação orçamentária é ação fundamental, que afeta todo o sistema” diz Moreira, da SBPC. “O orçamento aprovado pelo Congresso Nacional para 2019 já era insuficiente para a manutenção mínima do sistema de ciência e tecnologia”, lembra Davidovich. “Sem orçamento, não se faz pesquisa de qualidade”, diz Andréa Barbosa Gouveia. Portanto, é “urgente a recuperação” do financiamento à pesquisa, reitera Miriam Grossi. “Não se trata de gasto, mas de investimento no futuro do País”, diz Flavia Biroli.

Resgatar o orçamento do MCTIC é uma preocupação também por causa da Emenda Constitucional 95, a chamada PEC do Teto de Gastos. “Se esse contingenciamento se consolidar ao longo do ano, significa que nosso orçamento será o mais baixo das últimas décadas e permanecerá assim pelos próximos 20 anos”, alerta Ildeu Moreira.

As presidentes das entidades ligadas às ciências sociais revelaram ainda uma preocupação com a liberdade de pensamento. “É fundamental a liberdade de cátedra porque o avanço da ciência passa pela liberdade de pensamento nas instituições de pesquisa e de ensino”, diz Andréa Barbosa Gouveia. “Estamos enfrentando um momento muito duro, devido aos ataques conservadores e fundamentalistas do atual governo – expresso em entrevistas e declarações de diferentes ministros – contra nosso campo de conhecimento”, analisa Miriam Grossi. “O campo científico é diverso e envolve desafios também distintos, o que temos em comum é a compreensão de que é fundamental para o futuro do país: sem a valorização da ciência e da pesquisa, não produziremos alternativas de desenvolvimento que sejam sustentáveis e compatíveis com a construção de uma sociedade mais justa”, pondera Flavia Biroli.

Os entrevistados veem como positiva a importância dada ao programa Ciência na Escola, inserido na lista de prioridades para os cem primeiros dias do governo Bolsonaro, lembrando que também depende de recursos. “Achamos muito importante que o Ministério coloque essa questão da Ciência na Escola como prioritária, com envolvimento direto da própria Pasta”, comentou o presidente da SBPC. “É um projeto importante, que renova a educação e fortalece a cidadania, mas que requer para sua plena realização uma parceria com o MEC, uma vez que deve envolver uma preparação adequada de professores”, destacou Luiz Davidovich.

“Nossas escolas precisam de bons projetos, nossas crianças precisam de incentivos no processo de educação e certamente precisamos reposicionar a ciência em relações sociais atravessadas pela desinformação”, diz a presidente da ABCP. Para a presidente da Anped, o programa mostra que o Ministério “foi sensível a uma demanda das entidades, de que ciência fosse tratada no sentido amplo”.

A presidente da Anpocs lembra, por outro lado, de inúmeras outras iniciativas, algumas extremamente bem sucedidas como o programa PIBIC EM (Iniciação Cientifica no Ensino Médio), que ficaram sem recursos do CNPq. “Também é importante lembrar o sucesso e eficácia do programa PROEX, desenvolvido pelo MEC, que visava a uma forte articulação, através da extensão entre as universidades e escolas”.

A receptividade do ministro permite, na visão de Luiz Davidovich, destacar alguns pontos que deveriam ser parte da alta prioridade do governo, entre eles o potencial da bioeconomia, o ingresso do País na indústria 4.0 e a Inteligência Artificial. “Esses três pontos requerem, evidentemente, ciência, tecnologia e inovação da mais alta qualidade”, afirma o presidente da ABC. Nada disso ocorrerá, no entanto, sem um comprometimento dos mais altos escalões da República, bem como dos estados e do Congresso Nacional, diz Davidovich, completando: “É fundamental que essa agenda também faça parte do quotidiano do Ministério da Economia, pois sem isso, o Brasil continuará andando para trás, e em alta velocidade”.

Os entrevistados também destacaram a necessidade de a comunidade científica ampliar a comunicação com a sociedade, tanto através dos canais de representação política – Executivo e Legislativo – quanto pela mídia, seja a tradicional, seja os novos canais e redes sociais. “A SBPC faz isso há 70 anos, mas temos que fazer mais, e para isso é preciso unir forças”, diz Ildeu Moreira. “É fundamental continuarmos a intervir, enquanto cientistas, nos debates públicos que envolvem nossas áreas de conhecimento, mostrando o papel central da ciência brasileira no desenvolvimento nacional”, diz Miriam Grossi, lembrando que a área de Ciências Sociais deu forte contribuição na formulação da Lei Maria da Penha e no monitoramento e debate publico sobre questões de violências contra mulheres no Brasil. Luiz Davidovich sugere a ampliação de projetos envolvendo as escolas como o “Doe Uma Aula”, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o “Ciência na Praça”, convocando os bolsistas de iniciação científica e pós-graduação, em parceria com os municípios, para “atividades mão na massa”.

Para Andrea Barbosa Gouveia, é preciso mostrar a produção profícua que as universidades brasileiras têm, além de ocupar espaços na mídia. “Acho que o Jornal da Ciência tem feito esse papel. Precisamos dar mais visibilidade para os resultados de pesquisas”.  Flavia Biroli acrescenta que é imperativo que os cientistas empenhem esforços para se comunicar com o grande público, para além dos pares. “Esse relativo isolamento facilita a propagação de mentiras por parte de setores que não têm compromisso com o conhecimento e, ainda menos, com o acesso amplo à educação”, diz.

Janes Rocha – Jornal da Ciência