Existe um ditado popular que diz que o conhecimento por si só não basta, o importante é saber o que será feito com ele. Este foi o motivo que fez a jovem Beatriz Oliveira Santos ser uma das ganhadoras do Prêmio Carolina Bori “Ciência & Mulher”. Estudante de Nutrição da Universidade de São Paulo (USP), Beatriz usou um olhar inquieto e a pesquisa científica para identificar como a alimentação integrava um jogo político no sistema prisional de Manaus.
“A minha pesquisa busca fazer uma investigação, a partir do relato de familiares, sobre o que vem acontecendo na alimentação em Manaus. Já tem uns 10 anos ou mais que vêm ocorrendo algumas mudanças, modificações legais. Isso aumentou a partir de 2017, quando teve uns marcos mais fortes”, conta a ganhadora da categoria Graduação, na área de conhecimento de Biológicas e Saúde.
No último dia de 2016, 31 de dezembro, Manaus viveu uma grande rebelião prisional, que foi chamada depois de massacre. “A gente foi compreendendo, no decorrer da pesquisa, que a administração penitenciária sabia do risco dessa rebelião, por isso que a gente trata isso como massacre, porque teve a anuência do sistema prisional para tudo acontecer. Só que essa rebelião ocasionou a morte de muitas pessoas – dados variam de 56 a 61 mortes. Ela foi muito violenta. E a partir disso, a primeira resposta que o sistema prisional de Manaus deu foi reduzir a entrada dos futuros.”
Futuros, também chamados de jumbo, são um conjunto de itens que as famílias de uma pessoa no cárcere podem levar para ela. “Esses futuros costumam ter alimentos que possuem uma ligação cultural, além de alimentos para sobrevivência mesmo, como sal, açúcar e temperos. E aí, as marmitas que os presos recebiam do sistema prisional podiam ser retemperadas, eles podiam dar um outro significado. Então, as famílias entravam com esses futuros, que também tinham ali materiais de limpeza, materiais de higiene pessoal, e não havia um controle de quantidade para isso. Com o massacre, o sistema prisional começa a delimitar os futuros. No primeiro corte, só podia entrar com 15 itens, totalizando 1 kg.”
Em 2019, um novo acontecimento, a morte de um agente penitenciário, resultou em mais limitações aos futuros. “Existem várias histórias de que esse cara assediava as mulheres quando elas iam em dias de visita. Em um desses dias de visita íntima, um dos esposos dessas mulheres acaba assassinando o agente dentro da cadeia, um pouco consternado com as coisas que esse cara vinha fazendo. Como esse crime aconteceu no momento da visita, o sistema penitenciário acha que passou do ponto e aí ele pune de novo, reduzindo os futuros para 10 alimentos, além de outras modificações”, complementa Beatriz.
Em 2020, com a pandemia de covid-19, uma nova rebelião acontece. Os presos conseguem dominar a cadeia e, ao chegarem na cozinha, percebem ali uma variedade de alimentos – uma realidade diferente das refeições que recebiam. A indignação é respondida em forma de churrasco, mas o poder público revida proibindo oficialmente a entrada dos futuros.
“Quando a minha pesquisa começa, é buscando entender isso: qual foi essa trilha de proibições? O que essas proibições vão gerando e qual é o significado da alimentação no sistema carcerário?”, detalha.
Para entender essa situação, a jovem contou com ajuda de representantes de organizações locais de Manaus, de militantes e também de mulheres que possuíam familiares no cárcere.
“São diversos os relatos de dias de visitas em que as mulheres entram e veem os presos passando mal, emagrecendo. Aí elas voltam para suas casas com crises de depressão, passando mal também por conta dessas proibições. Depois, ocorre a chegada do body scanner. Então, para fazer a visita, é necessário passar pelo scanner de corpo. Diversas vezes, o scanner acusou que a comida que está na barriga, já consumida, é uma droga. Isso fez com que as mulheres começassem a fazer horários e horários de jejum para entrar com o estômago vazio. Então, a cadeia vai gerando essa gestão da fome, né? Uma gestão da fome de quem está preso, uma gestão da fome de quem visita, uma gestão da fome dessas famílias.”
A ideia de Beatriz olhar para a população prisional veio de suas vivências e de entender que existem pessoas marginalizadas. “Quando eu chego na USP, eu tinha 18 para 19 anos, e fui bombardeada com muitas coisas, somos bombardeados com a realidade de uma faculdade completamente elitista e racista. Eu chego naquela faculdade, que é a primeira faculdade de Nutrição do País. Então, ela já tinha bastante discussão sobre vários temas, mas eu percebi que tinha uma certa população que ainda não se falava a respeito.”
A estudante procurou uma professora porque queria pesquisar sobre a amamentação no sistema prisional – este foi o tema de sua primeira iniciação científica. Com o estudo concluído, teve contato com pessoas de Manaus, que vinham denunciando o descaso do Estado com a população, principalmente em janeiro de 2021, quando a covid-19 estava no ápice e a cidade sofria com a falta de oxigênio. As histórias da região impactaram a jovem, que escolheu seu tema de estudo.
“Nós temos uma população de jovens negros que estão sendo direcionados para trabalhos precários ou para o sistema prisional, e essas coisas se conversam. Quando eles não estão presos, eles estão trabalhando de motoboy ou trabalhando com diversas coisas, mas sem direito algum. Tudo isso é estar de frente com condições que vão levar para um adoecimento por fome, uma segurança alimentar completamente questionável. Então, para mim é assim, tem uma população sofrendo muito, e eu queria que a gente falasse sobre isso”, conclui.
Cerimônia será na próxima semana
Nesta 6ª edição de Prêmio Carolina Bori “Ciência & Mulher”, as ganhadoras da categoria Ensino Médio receberão R$ 7 mil cada, enquanto as vencedoras de Graduação serão agraciadas com R$ 10 mil cada uma, graças ao patrocínio de renomadas instituições, como Fundação Conrado Wessel, Instituto Serrapilheira, Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema) e o Complexo Pequeno Príncipe. Também foi concedida uma menção honrosa, que receberá um certificado e um troféu.
Além da premiação em dinheiro, as seis vencedoras terão acesso a uma série de oportunidades para impulsionar suas carreiras científicas. Elas apresentarão seus projetos na 77ª Reunião Anual da SBPC, que ocorrerá em julho de 2025, em Recife (PE), e participarão de uma mentoria exclusiva com pesquisadores de destaque, ampliando suas perspectivas acadêmicas e profissionais. As premiadas também serão contempladas com uma visita guiada ao CNPEM, em Campinas, na próxima quarta-feira, 12 de fevereiro, onde está localizado o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, a única fonte de luz síncrotron da América Latina.
A cerimônia de premiação acontecerá no dia 11 de fevereiro, no Salão Nobre do Centro MariAntonia da USP (Rua Maria Antonia, 294 – 3º andar – São Paulo/SP), durante a comemoração do Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, instituído pela Unesco, com transmissão ao vivo pelo Canal da SBPC no YouTube.
Criado em 2019, o Prêmio “Carolina Bori Ciência & Mulher” é uma homenagem da SBPC às cientistas brasileiras destacadas e às futuras cientistas brasileiras de notório talento. A premiação leva o nome da primeira presidente mulher da entidade, Carolina Martuscelli Bori, precursora na luta pela regularização da Psicologia enquanto ensino e profissão no Brasil, além de uma defensora da comunicação científica à sociedade.
Confira abaixo a lista das premiadas da 6ª Edição do Prêmio “Carolina Bori Ciência & Mulher” – Meninas na Ciência:
Categoria ENSINO MÉDIO:
Engenharias, Exatas e Ciências da Terra – Millena Xavier Martins (MG)
Humanidades – Isadora Abreu Leite (MA)
Biológicas e Saúde – Ana Elisa Brechane da Silva (SP)
Categoria GRADUAÇÃO:
Engenharias, Exatas e Ciências da Terra – Narayane Ribeiro Medeiros (SP)
Humanidades – Angélica Azevedo e Silva (DF)
Biológicas e Saúde – Beatriz Oliveira Santos (SP)
MENÇÃO HONROSA: Lucia Ferreira da Silva (AP)
Rafael Revadam – Jornal da Ciência