Referência da Antropologia no Brasil, Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha é a vencedora na área de Humanidades do 5º Prêmio Carolina Bori “Ciência & Mulher”.
Sua atuação distribui-se pela etnologia, história e direitos dos índios, escravidão negra, etnicidade, conhecimentos tradicionais e teoria antropológica. Na Universidade de São Paulo, fundou em 1986 o Núcleo de História Indígena e do Indigenismo e dirigiu um projeto temático sobre História Indígena. Formou mais de 30 mestres e doutores em sua atuação na Universidade Estadual de Campina (Unicamp), na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade de Chicago e faz parte de numerosos conselhos editoriais de revistas científicas.
Indicada pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Carneiro da Cunha é autora de 12 livros, 38 artigos em periódicos especializados e 32 capítulos de livros, além de organizadora de quatro livros. Foi presidente da ABA, é membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e integra a Comissão Arns de Direitos Humanos, entre outras atividades. Dos muitos prêmios que recebeu, destacam-se a Ordem do Mérito Científico, no Brasil, e a Légion d’honneur na França.
A cientista nasceu em Cascais, Portugal, em 1943. Aos 11 anos, mudou com a família para São Paulo. Graduou-se em Matemática pela Faculté des Sciences de Paris, França, em 1967. E, durante esse período de residência na França, especializou-se em Antropologia sob a orientação de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), de quem foi aluna por cerca de quatro anos.
“Paradoxalmente, eu me formei em Matemática em Paris. Todos os meus professores eram de uma corrente muito especial, que era estruturalista de espírito. E o estruturalismo em Antropologia estava despontando naquele momento, com Claude Lévi-Strauss publicando coisas muito importantes, como o livro ‘O pensamento selvagem’, em 1962, e começando em 64 com a série das Mitológicas. Isso tudo me interessou. Por isso, depois que me formei em Matemática Pura, resolvi tentar a Antropologia”, conta em depoimento para a SBPC.
De volta ao Brasil, doutorou-se em Ciências Sociais pela Unicamp, em 1976, com tese sobre o sistema funerário e a noção de pessoa dos indígenas Krahô, orientada por Peter Fry. “Quando cheguei ao Brasil a Unicamp estava começando um Departamento de Antropologia no qual me inscrevi. Depois de um ano fui convidada a ser professora nesse mesmo curso. Aprendi muito dando aula”, comemora.
Na sequência, ao longo das décadas de 1980 e 1990, fez pós-doutorado nas universidades de Cambridge, na Inglaterra; Stanford e Chicago, nos Estados Unidos; e no College de France, na França.
“Eu ensinei por 11 anos na Unicamp, depois fui para a USP. A minha docência na USP foi sobre uma pesquisa na Nigéria. A tese da minha livre-docência foi algo meio histórica e meio antropológica, já que tratei dos libertos no Brasil que ao depois de serem escravizados e libertos retornaram para hoje o que é a Nigéria. Estudei como eles se reinstalaram a partir do momento que foram expulsos do Brasil. Lá, eles se tornaram uma burguesia muito católica e muito tradicionalista. Fiquei mais 11 anos na USP e depois fiquei outros15 anos na Universidade de Chicago, também no Departamento de Antropologia. Foi uma grande honra e aprendizado. Mas isso não me desenraizou daqui”, afirma.
A antropóloga lembra que foi no final da década de 70 que se engajou na política indigenista no Brasil. “Enquanto o País vivia um regime autoritário, eu fazia isso em uma associação pró-índio fora da universidade. Quando voltamos à Democracia essa atividade pôde ser transferida para a Universidade de São Paulo, onde eu formei um núcleo de estudos que foi financiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Lá fundei, em 1986, o Núcleo de História Indígena e do Indigenismo, com o professor/historiador John Manuel Monteiro. Foi um período muito fecundo. Em 1992 publicamos a primeira história dos índios no Brasil. Foi uma semente importante para os estudos atuais, sobre a história indigenista. O acesso que tínhamos eram de fontes brasileira e portuguesa, tínhamos muito pouco acesso à história vista pelos indígenas”, lembra.
Ao avaliar sua carreira, Carneiro da Cunha diz que suas maiores vitórias foram na arena política, particularmente na legislativa. “O fato de a gente ter se preparado na comissão pró-índio por tantos anos para entender o que estava se passando nesse universo nos ajudou a levar uma proposta na Constituinte, aliados a outros grupo e especialistas. Fomos uma voz importante para defender esses direitos que estão na Constituição de 1988. Uma vitória que está sempre sob ameaça, particularmente agora, que a Frente Parlamentar do agronegócio está tão poderosa”, observa.
“Quanto aos vários prêmios que recebi, a impressão que tenho é que o que ainda escrevo possa ter alguma ressonância. Eu estou muito feliz de ser reconhecida pelo meu trabalho do passado e espero continuar contribuindo”, acrescenta.
Para Carneiro da Cunha, receber o Prêmio Carolina Bori é muito importante por ele levar o nome de uma cientista que ela admira. “Fico particularmente feliz com esse prêmio porque, quando eu era jovem, conheci a Carolina Bori em uma época difícil e ela era de uma coragem e dignidade extraordinárias. Eu realmente queria me parecer com ela quando crescesse. Assinamos juntas vários artigos de jornais durante a Constituinte. Nós estivemos juntas até na Assembleia Constituinte para protestar contra o que o então sistematizador Bernardo Cabral tinha feito das propostas que estavam vencendo no primeiro turno da Assembleia. Carolina Bori é um exemplo de uma cientista e de uma pessoa engajada na política brasileira, e é o que eu tenho, mais ou menos, feito na esteira dela.”
Ao falar de sua área de atuação, Carneiro da Cunha pontua que a Antropologia oferece amplas oportunidades para quem busca estudar e defender os direitos indígenas e, para além disso, ela ressalta o grande senso de ética que existe entre os antropólogos. “Diante disso, o meu conselho que é: tenham prazer no que fazem. Nós temos uma vantagem enorme enquanto cientistas, porque a aposentadoria não nos atinge, sobretudo aqui no Brasil. Podemos continuar a pesquisar, orientar estudantes, inclusive os pós-docs. Portanto, continuamos fazendo parte da comunidade e tendo contato com as outras gerações. Não há aquela tristeza que outras profissões trazem. E isso é um grande privilégio”, finaliza.
O Prêmio
Além de Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha, serão premiadas nesta terça-feira a química Yvonne Mascarenhas, na área de Engenharias, Exatas e Ciências da Terra, e a biomédica Regina Pekelmann Markus, na área de Biológicas e Saúde.
Nesta 5ª edição do Prêmio “Carolina Bori Ciência & Mulher”, a SBPC recebeu 50 indicações de 52 Sociedades Científicas Afiliadas à entidade. Do total de indicadas, 15 eram da área de Humanidades, 18 das Biológicas e Saúde e 17 das Engenharias, Exatas e Ciência da Terra.
Criada em 2019, a premiação, que leva o nome de sua primeira presidente mulher, Carolina Martuscelli Bori, é uma homenagem da SBPC às cientistas brasileiras destacadas e às futuras cientistas brasileiras de notório talento. A entidade — que já teve três mulheres presidentes e hoje conta com uma maioria feminina em sua Diretoria — criou essa honraria por acreditar que homenagear as cientistas brasileiras e incentivar as meninas e mulheres a se interessarem por este universo é uma ação marcante de sua trajetória histórica, em que tantas mulheres foram protagonistas do trabalho e de anos de lutas e sucesso na maior sociedade científica do País e da América do Sul.
A cerimônia de entrega do Prêmio, que integra celebrações do Centenário de Nascimento de Carolina Bori, será nesta terça-feira, 06 de fevereiro, com transmissão pelo canal da SBPC no YouTube a partir das 10h. Aberto a todos e gratuito, o evento será realizado no Salão Nobre do Centro MariAntonia da USP, em São Paulo.
Jornal da Ciência