A impunidade em relação aos golpes e tentativas de golpe à democracia na história recente do Brasil, desde 1964 até os eventos mais recentes de 2022 e 2023, foi tema de uma mesa-redonda especial realizada na última segunda-feira (31/03) pela Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC) em parceria com a Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Com o título “Do Golpe Militar de 64 ao 8 de Janeiro de 2023: a necessidade de defender a democracia”, a discussão parte do pressuposto de que a falta de punição para atos antidemocráticos no passado criou um ambiente que permitiu não apenas o golpe de 1964, mas também as tentativas, felizmente fracassadas, de desestabilização nos últimos anos.
“Temos a convicção de que o fato do Brasil jamais ter feito um trabalho bom de memória, de reconhecimento do que é horrível em seu passado, acaba sempre abrindo espaço para a repetição”, afirmou o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, na abertura do evento.
O golpe militar de 31 de março de 1964 foi precedido por uma série de eventos que permaneceram impunes, como o suicídio forçado de Getúlio Vargas em 1954, a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitscheck em novembro de 1955, as rebeliões de Jacareacanga e Aragarças, e a Operação Mosquito, que planejava assassinar o presidente João Goulart. Esses episódios funcionaram como uma espécie de “ensaio geral” para o golpe final, desferido em março-abril de 1964. Da mesma forma, os ataques à democracia entre 2019 e 2022 – incluindo os discursos inflamados, os bloqueios de estradas, o vandalismo durante a diplomação de Lula e Alckmin em 12 de dezembro de 2022, culminando na tentativa de explodir o aeroporto de Brasil na véspera de Natal – também seguiram um roteiro de impunidades que culminou na invasão e vandalização dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023.
Para debater este panorama, a atividade contou com a participação do desembargador Alfredo Attié, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP), que também é doutor em Filosofia do Direito e foi um dos autores da petição enviada ao STF (Supremo Tribunal Federal) pela interdição de Jair Bolsonaro por insanidade mental.
O segundo convidado foi o professor titular da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), Juremir Machado da Silva, que é historiador, jornalista e escritor, conhecido por obras como “História regional da infâmia – o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras” (Porto Alegre: L&PM, 2010) e uma importante biografia de Getúlio Vargas (“Getúlio”. Rio de Janeiro: Record, 2004). A mediação ficou a cargo dos presidentes das duas entidades, Janine Ribeiro (SBPC) e Helena Bonciani Nader (ABC).
Em sua fala de abertura, o presidente da SBPC destacou as penalizações dos responsáveis pelos eventos de 8 de janeiro de 2023, incluindo o julgamento do ex-presidente da República Jair Bolsonaro, que seguem em votação no STF.
“O golpe de 1964, por não ter sido devidamente trabalhado na memória democrática nacional, abriu espaço para certos nostálgicos da ditadura apoiarem o Governo Federal que tivemos no período passado e que tentaram um Golpe de Estado, que está sendo agora julgado. É um trabalho inovador o que o Judiciário está fazendo”, ponderou Janine Ribeiro.
O professor da PUC-RS, Juremir Machado da Silva, fez uma linha do tempo dos golpes à democracia brasileira. Para o especialista, além do País, representado por seu Governo Federal, não reconhecer esse passado autoritário, não há penalizações a quem ameaça a democracia, o que incentiva a recorrência destas ações.
“O Brasil tem uma longa tradição de anistia a golpistas. Sempre no intuito de pacificar a nação, de acalmar os ânimos, de ir em frente. As anistias aconteceram muitas vezes na história do País.”
Para Juremir, o julgamento de Bolsonaro no STF é um movimento político que pode romper esse histórico de impunidades. “Normalmente, essas tentativas de golpe estão associadas à ideia de que o resultado eleitoral não foi legítimo, que foi fraudado, como insistiu bastante Bolsonaro, mas também é possível imaginar que esse imaginário de golpe no Brasil se desenvolveu principalmente a partir das tantas anistias feitas, que estimulam a ideia de que não há punição. É preciso aceitar que a democracia é a alternância de poder.”
O especialista ponderou que o Brasil precisa desconstruir a ideia do golpe como solução política. “É preciso romper com essa ideia e construir um novo imaginário, de um país que resolva seus problemas pela democracia e que aceite a ideia de que a derrota de hoje pode não ser definitiva, haverá uma próxima eleição. De certo modo, nós continuamos necessitando fortemente do desenvolvimento da crença na democracia como o melhor dos regimes políticos e, pelo qual, é preciso se investir completamente.”
Complementando o debate, o desembargador Alfredo Attié reforçou que os fatos anti-democráticos da história do Brasil não são fatos isolados. “O golpe não é apenas um momento, ele é um processo. Ele passa por um momento de preparação e várias tentativas. Nós tivemos exatamente isso no Brasil a partir de atuações contra a democracia.”
Attié falou também sobre o papel do poder Judiciário como articulador de práticas golpistas, como as realizadas nos últimos anos. “Nós não podemos esquecer da atuação anti-política, anti-constitucional, que o Judiciário empreendeu sobretudo a partir da Operação Lava-Jato e do lavajatismo como uma cultura de intervenção nociva jurídica na política. E, também, não podemos esquecer do julgamento que sofreu o atual presidente da República, Lula – um julgamento injusto, inconstitucional, e que acabou entrando, digamos assim, como um ingrediente de preparação desse novo golpe a que nós assistimos em janeiro de 2023.”
Para o especialista, com o julgamento de Bolsonaro no STF, o Judiciário agora, de certa forma, pode ter uma redenção do seu papel anterior. Attié também concordou com os argumentos de Juremir sobre o Brasil ter uma tradição enraizada de golpes.
“Eu diria que se trata de uma cultura voltada a destruir a capacidade política de construção de uma sociedade efetivamente justa, democrática, igualitária, com liberdade e solidariedade.”
Retomando a palavra, o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, observou que, no Brasil, o que seriam mudanças efetivas – a independência, a República, movimentos democratizantes como a Revolução de 1930, a deposição da ditadura em 1945 e a democratização de 1985 – foram sempre conduzidas “por cima”, por próceres do regime anterior: o príncipe herdeiro de Portugal, o marechal do Império, figurões dos governos anteriores; e isso sempre bloqueou um verdadeiro ajuste de contas com o passado. Os julgamentos ora em pauta no Supremo Tribunal permitem romper com esse padrão, e por isso são mais que necessários.
Para a presidente da ABC e presidente de honra da SBPC, Helena Nader, além do reconhecimento público sobre os golpes e da punição aos seus envolvidos, o Brasil precisa rever a forma com que narra a sua linha do tempo.
“O que eu vejo é que o Brasil tem uma falha grave na sua educação, que é a maneira como a gente conta a nossa história. Se nós formos olhar, a nossa história é sempre muito embelezada. Por exemplo, não derramamos sangue para termos a nossa independência. Onde? No imaginário de quem escreveu isso. Então, a gente ensina mal as histórias e, ensinando mal, o jovem não vai aprender aquilo que deveria.”
Nader ressaltou a importância das novas gerações terem a consciência do que são estes atentados à democracia, para que eles, no futuro, possam defender o País.
“A gente lutou para termos o Estado Democrático de Direito de volta, porém, abrimos mão de ensinar que houve uma ditadura. A gente não ensina isso de uma forma clara, e isso é uma necessidade. O estudante tem que entender a conquista que foi a Constituição de 1988. Essa Constituição é uma beleza em relação aos direitos e obrigações, para que o Brasil tenha uma cidadania plena”, concluiu.
Confira as referências citadas no debate:
Autoritarismos Neoliberais: o Estado de Sítio – Alfredo Attié
Autoritarismos Neoliberais: o Estado de Sítio – primeira parte (1/3) – Brasil 247
Autoritarismos Neoliberais: o Estado de Sítio – segunda parte (2/3) – Brasil 247
Autoritarismos Neoliberais: o Estado de Sítio (3/3) – Brasil 247
Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito – Alfredo Attié
História Regional da Infâmia – Juremir Machado da Silva
Brizola: Vozes da Legalidade – Juremir Machado da Silva
Brizola: Vozes da Legalidade – Juremir Machado da Silva (Amazon)
A mesa-redonda “Do Golpe Militar de 64 ao 8 de janeiro de 2023: a necessidade de defender a democracia” está disponível na íntegra no canal da SBPC no YouTube.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência