Um passo à frente, outro atrás

Quando, em outubro deste ano, o Papa Francisco reconheceu a evolução como “uma abordagem científica válida para o desenvolvimento dos humanos” e declarou não achar a teoria biológica da evolução e a crença criacionista visões excludentes, respirei um pouco aliviada. Não tanto pelo fato em si, mas porque pensei que finalmente alguém do campo religioso usava a terminologia correta (teoria para a visão científica e crença para a visão religiosa) – e que isso, por si só, já seria um importante passo para uma discussão mais ampla do que é ciência e do que é religião ou, ainda, para se diferenciar mais claramente os pressupostos em que cada uma dessas visões do mundo se baseia.
Projeto de lei que propõe a inserção da doutrina criacionista na grade curricular de ensino no país reacende polêmica sobre se considerar teoria científica e crença religiosa como formas de conhecimento equivalentes a serem apresentadas em sala de aula
Quando, em outubro deste ano, o Papa Francisco reconheceu a evolução como “uma abordagem científica válida para o desenvolvimento dos humanos” e declarou não achar a teoria biológica da evolução e a crença criacionista visões excludentes, respirei um pouco aliviada. Não tanto pelo fato em si, mas porque pensei que finalmente alguém do campo religioso usava a terminologia correta (teoria para a visão científica e crença para a visão religiosa) – e que isso, por si só, já seria um importante passo para uma discussão mais ampla do que é ciência e do que é religião ou, ainda, para se diferenciar mais claramente os pressupostos em que cada uma dessas visões do mundo se baseia.
Mas minha alegria (ou ingenuidade) durou pouco. Não passou nem um mês para vir à tona a notícia do projeto de lei apresentado em novembro último à Câmara dos Deputados e no qual se propõe a inserção da “doutrina criacionista” na grade curricular das redes pública e privada de ensino do país, como alternativa ao ensino da “teoria do evolucionismo”. 
Com isso, reacendeu-se a ‘velha fogueira’, alimentada pela falta de conhecimento e confusão entre o que é uma teoria científica e o que é uma crença religiosa. Ou, ainda, reeditou-se o equívoco de considerar que uma teoria científica (a da evolução) e uma crença (o criacionismo) são formas de “conhecimento” ou “disciplinas” equivalentes “cognitivamente” e que devem, por isso, ser apresentadas e debatidas de forma conjunta, por exemplo, nas aulas de ciências.
Ciência em debate?
Portanto, se você é professor de ciências e biologia, fique atento. Encontra-se em debate a questão. Também se encontram em foco a necessidade e a urgência de esclarecer o mais amplamente possível o que é a ciência e ‘como ela funciona’ – agora, inclusive, para os deputados integrantes da Comissão de Educação (CE) e da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara Federal, que deverão em breve analisar e decidir sobre o projeto apresentado.
Dê uma olhada aqui no que é proposto no projeto. O projeto de lei 8099/2014 é de autoria do deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), pastor do Ministério Catedral do Avivamento, e foi apensado (anexado) a outro projeto de lei (PL 309/2011), também de sua autoria, que propõe a obrigatoriedade do ensino religioso nas redes públicas de ensino do país.
O argumento central do projeto 8099/2014, agora proposto, é a ideia de que a liberdade de consciência e de crença, definida na Constituição, está sendo burlada por não se incluir e garantir que o criacionismo esteja presente em nossa educação básica, lado a lado com a teoria evolucionista, uma vez que ele já é, segundo afirmativa do deputado, a crença da maioria da população brasileira e defendido e ensinado pela maioria das religiões em nosso país, entre as quais a católica e as chamadas evangélicas.
O que se requer – explica Marco Feliciano na justificativa de seu projeto – não é, portanto, a supressão da teoria evolucionista dos currículos escolares, mas a inclusão da doutrina criacionista, para permitir “alternância de conhecimento de fonte diversa a fim de que o estudante avalie cognitivamente ambas as disciplinas”.
Reação ao projeto de lei
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) reagiu prontamente e de forma contrária à proposta apresentada por Marco Feliciano. Também o fez a Associação Brasileira de Ensino de Biologia (Sbenbio) e a Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (Abrapec).
Segundo a SBPC, a proposta contém equívocos graves e argumentos falsos, entre os quais a ideia de que, ao se tornar obrigatório o ensino do criacionismo nas escolas da rede pública e privada, “a liberdade de crença dos alunos” estará sendo preservada. 
Ao contrário disso, a SBPC entende que, ao se introduzir a obrigatoriedade do ensino do criacionismo nas escolas, se estará violando a liberdade de crença daqueles alunos que não compartilham da crença criacionista, mas estarão obrigados a estudá-la.  
O Brasil, lembra a SBPC na carta enviada aos congressistas (cuja íntegra você pode ler aqui), é um Estado laico – garante a separação entre Estado e religião e não possui uma religião oficial. A liberdade de crença religiosa está assegurada em nosso país a todo cidadão pela Constituição Federal, uma vez que o ensino religioso, como também previsto e regulamentado em nossas leis, é matéria facultativa às escolas e, quando oferecido, deve ser capaz de assegurar o respeito à diversidade cultural religiosa do país, ser de livre adesão e livre presença aos alunos. Tornar obrigatório o ensino do criacionismo, mesmo no âmbito do ensino religioso seria, portanto, inconstitucional e uma violação à liberdade de crença já assegurada pela Constituição e demais leis, defende a SBPC.
Evolução não é crença
Outro equívoco também apontado pela SBPC no projeto de lei apresentado por Feliciano é a tentativa de equiparar a teoria da evolução e o criacionismo, conferindo-lhes um mesmo status cognitivo e considerando-os visões de mundo opostas e excludentes, a ponto de serem apresentadas e discutidas conjuntamente, por exemplo, nas aulas de ciências. 
“A teoria da evolução não é crença, é ciência” e “o criacionismo não é ciência, é crença”, esclarece a SBPC em sua carta aos congressistas. 
Como teoria científica, explica a SBPC, a teoria da evolução está baseada em observações e experimentos realizados em uma ampla gama de disciplinas científicas. Além disso, atende às premissas da ciência e tem sido testada ao longo dos anos, confrontada com os fatos e corroborada por evidências científicas acumuladas. O criacionismo, por sua vez, não satisfaz a essas condições essenciais. Não pode ser testado, refutado, confrontado com a realidade por meio de observações e experiências ou ter verificadas as suas afirmações. Encontra-se, sobretudo, baseado em valores morais e éticos, constituindo-se em uma crença.
É, portanto, justamente por terem “naturezas e critérios de análise distintos”, que a SBPC não considera adequado apresentar crenças criacionistas em aulas de ciências, lado a lado à apresentação da teoria da evolução biológica. O ensino de “conceitos não-científicos” nas aulas de ciência apenas irá “confundir os estudantes quanto aos processos, natureza e limites da ciência”, considera a Sociedade.
Também a Sbenbio e a Abrapec, associações que reúnem pesquisadores e professores ligados ao ensino de ciências e biologia, se manifestaram contrárias ao projeto apresentado por Marco Feliciano. 
Em carta aberta, assinada conjuntamente e divulgada em 24 de novembro, as entidades alertam, como o fez a SBPC, para a inconstitucionalidade do projeto e argumentam a favor da necessidade de se diferenciar ciência e crença. Mas, além disso, tecem duras críticas ao que chamam de “falsos argumentos” que embasam o projeto de lei apresentado por Marco Feliciano.
Segundo a Sbenbio e a Abrapec, não é correto, por exemplo, afirmar, como se faz no projeto, que o ‘pertencimento religioso’ e a própria doutrina criacionista não encontram condições de se expressar no ambiente escolar. Quem conhece “minimamente a realidade escolar”, alegam as entidades, sabe que “diferentes pontos de vista religiosos (e muitos de outra natureza) já se fazem presentes na maioria das salas de aula de diversas maneiras”, uma vez que constituem “inquietações e visões de mundo” dos alunos. 
Ao contrário do que se proclama no texto do projeto de lei PL8099/2014, a Sbenbio e a Abrapec consideram que o que está em jogo agora não é a garantia do debate saudável entre religião e ciência ou a defesa da pluralidade, que já existiria na maioria das escolas, inclusive, nas aulas de ciências. Mas a “tentativa de ingerência indevida do proselitismo religioso na educação básica pública e privada” do país ou, ainda, de “ocupação por movimentos religiosos institucionalizados dos mais diversos espaços (a escola e seu currículo são apenas alguns deles)”, a fim de angariar mais seguidores.