Ciência brasileira: os caminhos da ousadia

Quais parâmetros são aceitáveis na hora de analisar a produção científica de uma nação? Quais números, estratégias e atitudes são capazes de revelar seus entraves e potencial? Em 2010, a revista americana Science publicou matéria de seis páginas que destacava o momento de crescimento da ciência brasileira. Há poucos meses, porém, em novembro de 2013, a editora-chefe da Science, Marcia McNutt, deu entrevista ao jornal Estado de S. Paulo na qual sugeriu que faltaria ousadia aos nossos pesquisadores . Nem a matéria elogiosa nem a recente crítica passaram em branco pela comunidade científica nacional; trata-se de uma das mais tradicionais e respeitadas publicações de ciência do mundo.
Pesquisadores falam sobre os desafios e as demandas de quem se dedica a fazer Ciência no Brasil
Quais parâmetros são aceitáveis na hora de analisar a produção científica de uma nação? Quais números, estratégias e atitudes são capazes de revelar seus entraves e potencial? Em 2010, a revista americana Science publicou matéria de seis páginas que destacava o momento de crescimento da ciência brasileira. Há poucos meses, porém, em novembro de 2013, a editora-chefe da Science, Marcia McNutt, deu entrevista ao jornal Estado de S. Paulo na qual sugeriu que faltaria ousadia aos nossos pesquisadores . Nem a matéria elogiosa nem a recente crítica passaram em branco pela comunidade científica nacional; trata-se de uma das mais tradicionais e respeitadas publicações de ciência do mundo.
Buscando traçar um cenário mais nítido sobre a produção científica feita no Brasil hoje, Cidadania colheu depoimentos sobre o assunto. E, ainda que nenhum artigo possa exaurir questões tão complexas, existe razoável concordância sobre a necessidade de cautela nas análises, para que não recaiam em pessimismo contraproducente, tampouco comprem entusiasmo que minimize os obstáculos para o desenvolvimento das ciências no País. Ao que parece, os caminhos da ousadia passam pelo equilíbrio.
MUITA PRODUÇÃO, BAIXA INOVAÇÃO
Em 2010, o diretor-científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Carlos Henrique de Brito Cruz, publicou texto que enumerava desafios do setor para os cinco anos seguintes: a) aumentar a capacidade de inovação tecnológica e a competitividade; b) desenvolver o sistema de ensino superior e de pesquisa para ampliar a capacidade nacional de criação e formação de recursos humanos; c) expandir o sistema nacional de inovação, buscando reduzir as desigualdades regionais; d) desenvolver algumas universidades para serem centros de excelência.
Com mais ou menos variações, os diagnósticos feitos por outros especialistas costumam ser bem próximos do traçado por Carlos Henrique. Aquele elenco de medidas a serem tomadas, no entanto, não significava balanço negativo da situação das ciências no Brasil. Pelo contrário, logo na abertura do texto, ele citou a criação do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), em 1951, como marco inicial de “uma série de iniciativas do governo federal e de alguns governos estaduais que contribuíram para que se criasse no Brasil uma infraestrutura acadêmica inexistente em países em desenvolvimento”.
Há dois meses, a bióloga Helena Nader abordou o mesmo tópico do crescimento da produção científica. E, para a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), os números continuam respaldando a tese de avanço: “A produção científica brasileira hoje é responsável por 2,7% no contexto mundial, ocupando o 13o lugar no ranking, baseado nos artigos publicados em revistas indexadas”.
Por outro lado, ambos concordam sobre o aspecto mais frágil desse crescimento: sua capacidade de inovação. Neste ranking , o Brasil está bem pior: fica na 64a colocação entre 142 países, segundo a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi). Ou seja, nossos cientistas produzem bastante, mas seus trabalhos geralmente são de baixo impacto, ratificam ou incrementam resultados, em vez de oferecerem pesquisas de fato inovadoras. Dados que reforçam essa conclusão são os pedidos de patente, que, apesar de expressivo aumento – 12,2% entre 2012 e 2013, passando de 589 para 661, segundo dados da própria Ompi –, ainda são considerados bem abaixo do potencial brasileiro. (A título de comparação, no mesmo período, a Suíça contabilizou 4.367 pedidos de patente; Estados Unidos, com 57.239, e China, com 21.516, lideram o ranking.)
Seria realmente este um sintoma de “falta de ousadia” de nossos cientistas? Na entrevista que concedeu ao Estado de S. Paulo em novembro último, a editora-chefe da Science chegou a sustentar que nem a falta de recursos justificaria uma cultura de aversão ao risco e de medo do fracasso: “Não dá para colocar um preço em ousadia. É mais um estado de espírito, uma forma de questionar, elaborar perguntas e conduzir experimentos. Você pode gastar muito dinheiro num trabalho puramente incremental ou pode gastar pouco para conseguir fazer um experimento revolucionário”. Os profissionais ouvidos pelo Cidadania, porém, oferecem visão com mais nuances sobre o assunto.
A INFLUÊNCIA DO AMBIENTE ACADÊMICO
Guilherme Azevedo é engenheiro naval formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem doutorado pela McGill University, no Canadá, faz parte do Cambridge Institute for Brazilian Studies, nos Estados Unidos, e, recentemente, foi confirmado como professor da Audencia Nantes École de Management, na França. Ele se considera apto para comparar diferentes ambientes acadêmicos e de pesquisa, não hesitando em afirmar que o cientista brasileiro não pode ser definido pela aversão ao risco: “O ambiente acadêmico, social, econômico e empresarial no Brasil é intensa e perversamente instável. Sofremos, em particular, com a carência de instituições que possam mitigar e estabilizar esses riscos. Por isso, temos que ser mais flexíveis, mais cautelosos nos julgamentos do que aqueles que fazem pesquisa em contextos onde a blindagem é elevada o suficiente para permitir que se abracem os riscos de experimentos malogrados e a ousadia de produzir os ‘trabalhos originais e revolucionários’, exaltados pela editora-chefe da Science”.
Viviani Souza, que faz doutorado na Harvard School of Public Health, nos Estados Unidos, também não acredita ter encontrado lá profissionais mais ousados do que os brasileiros: “Não temos medo, temos, sim, muito trabalho para nos estruturar e educar no caminho da pesquisa”. Ela pondera que investimentos têm sido feitos nos últimos anos no Brasil, mas que implicam tempo para a colheita dos resultados. Porém, assim como Guilherme Azevedo, ela não minimiza as diferenças sensíveis que nota entre os universos científicos dos dois países, e cita um exemplo: “A solicitação de insumos de pesquisa (reagentes, medicação, material de laboratório, etc.), que nas universidades estrangeiras é atendida em uma semana, no Brasil, por conta da burocracia e da eventual falta de dinheiro, leva o profissional a esperar mais de um mês. Sem falar que, na Harvard, testemunhei bem mais colaboração entre os grupos de pesquisa, o que agiliza a resolução de problemas”, diz a doutoranda.
O biólogo Adalberto Luis Val, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), também vê elementos na academia que desestimulam a inovação e defende que, para avançar nessa questão, são necessários sistemas mais ousados. “Nossas rotinas internas de avaliação e de financiamento estão baseadas num processo de produção seguro”, diz Adalberto. “A gente prefere investir em coisas muito mais seguras. É como uma carteira de investimentos de banco: de um lado você tem a caderneta de poupança, pela qual você ganha pouco, mas de forma contínua; do outro lado você tem ações de empresas extremamente ousadas, pelas quais você provavelmente vai perder muitas vezes antes de ganhar.”
Marcelo Souza, pesquisador em física aplicada e saúde, doutorando pela Universidade de São Paulo (USP) e também pela Harvard School of Public Health, parece concordar com o diretor do Inpa: “Nas grandes universidades, problemas estão mais relacionados com a utilização do dinheiro em estruturas de poder que sufocam a criatividade e a inovação”. Entre os supostos equívocos, ele comentou os mecanismos de aprovação nos concursos e de promoções dos pesquisadores, pelos quais importaria mais o número de artigos publicados, em detrimento da qualidade: “Um estudante de pós-graduação (em geral, desempregado, pois a maioria das bolsas exige dedicação exclusiva ou restrição das horas de trabalho), que busca aprovação em concurso, teme ‘perder’ dois anos em uma pesquisa que pode dar em nada. Acontece o mesmo com o concursado, pois esse investimento de tempo pode representar mais dois anos sem a tão esperada promoção. Ousar é privilégio de quem está há mais tempo na carreira, bem sucedido e estabelecido. Subir na vida acadêmica, no Brasil, significa ficar cada vez mais atolado em burocracia, longe do laboratório”.
Ano passado, repercutiu bastante um artigo de Fernando Reinach, professor da USP e especialista em biologia molecular. O texto se referia à chamada “Salami Science”, ou seja, a prática de fatiar uma única descoberta para utilizá-la no maior número possível de artigos científicos. “O cientista aumenta seu currículo e cria a impressão de que é muito produtivo. O leitor é forçado a juntar as fatias para entender o todo. As revistas ficam abarrotadas. E avaliar um cientista fica mais difícil”, afirmou o colunista do Estadão. Assim como Marcelo Souza, o professor Reinach questionava as avaliações feitas por fórmulas matemáticas, que levam em conta número de trabalhos publicados, quantas vezes esses textos foram citados na literatura especializada e a qualidade das revistas que os publicaram. E concluía: “Não há dúvida de que métodos quantitativos são úteis para avaliar um cientista, mas usá-los de modo exclusivo, abdicando da capacidade subjetiva de identificar pessoas talentosas, criativas ou simplesmente geniais, é caminho seguro para excluir da carreira científica as poucas pessoas que realmente podem fazer descobertas importantes”.
Apesar de todas as críticas a elementos do ambiente acadêmico brasileiro, no entanto, boa parte dos entrevistados reconheceram esforços dos setores de gestão e produção de Ciências e Tecnologia no Brasil. Muitos países sequer possuem órgãos como a Capes e o CNPq, fundações de amparo, leis voltadas para inovação (vale lembrar que a Lei de Inovação completa uma década em 2014), ou programas como o Ciência sem Fronteiras – que já financiou 45,6 mil bolsistas em três anos, possibilitando que esses estudantes pudessem conhecer realidades científicas de outras nações.
UMA ATIVIDADE SOCIAL, COM FINS SOCIAIS
Já o especialista em imunologia e bioquímica Ricardo Gazzinelli, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de Massachusetts, chama atenção para outro fator que pode explicar, em parte, o baixo índice de inovações da produção brasileira, e que não diz respeito exclusivamente à academia: as parcerias entre universidades públicas e iniciativa privada. Ele afirma que “o desenvolvimento de um produto demora anos, talvez décadas, e não deve ser o objetivo maior da pesquisa básica; basta ver a lista de descobertas que levaram muitos pesquisadores a ganhar o Prêmio Nobel e que não tinham cunho prático e imediato”. E, então, pondera: “Parece-me que os empresários do Brasil (isto inclui também algumas empresas governamentais) querem o resultado (lucro) para amanhã. Desta forma, preferem comprar tecnologia pronta, a investir em uma nova ideia.”
Já para Diogo Simões, presidente da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe), a interação entre iniciativa privada e instituições de pesquisa deveria ser mais incentivada, “pois esse é um ingrediente essencial não apenas para a inovação nas empresas, mas também para colocar novos desafios à pesquisa científica e tecnológica”.
Seria apressado generalizar a disposição do empresariado brasileiro para o investimento em ciência – de fato, tão apressado quanto generalizar o estado de espírito de uma nação inteira de cientistas. Tampouco seria prudente o afastamento entre universidades e empresas. Um alerta, contudo, é feito pelo engenheiro agrônomo Klaus Reichardt, professor titular sênior e aposentado da USP, vencedor do Prêmio Fundação Bunge em 2013 . Ele adverte que é preciso administrar com razoabilidade essa abertura para o mercado, conciliar a busca de conhecimento com a solução de problemas da sociedade, dialogar com a iniciativa privada, sem, entretanto, perder de vista os projetos que não têm aplicação imediata. Ele cita um caminho de parceria já adotado: “Há algum tempo, houve abertura para que todo docente pudesse trabalhar um dia por semana em cooperação com a iniciativa privada, desde que seu projeto fosse devidamente aprovado pelos órgãos competentes da instituição de ensino. Este mecanismo estimula muito a realização de projetos, resolvendo assim vários problemas da sociedade e trazendo recursos para dentro da universidade”.
Adalberto Luis Val, do Inpa, também aposta no equilíbrio como vereda de desenvolvimento. “Não concordo inteiramente com a declaração da editora da Science. Precisamos ter uma parcela da ciência brasileira, da pesquisa nacional, trabalhando com mais ousadia mesmo”, diz o biólogo, embora isso não deva resultar em todos os cientistas se dedicando a pesquisas inovadoras e de longo prazo. “Até porque a ciência é uma atividade social com fins sociais. E, portanto, muitas vezes ela precisa lidar com questões locais, que não têm interesse mundial, não têm interesse para a Nature ou para a Science.”