Brasil não chegará ao patamar de fome zero se não olhar para a sua população, denunciam especialistas

Mesa-redonda realizada na 74ª Reunião Anual da SBPC apontou caminhos para reverter o cenário de miséria após a pandemia; para os presentes, a solução está na Ciência
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Foto: Jardel Rodrigues/SBPC

O Brasil não conseguirá sair do mapa da fome se não olhar para o aumento da miséria da população e não combater uma visão política enraizada governamentalmente. Este é o principal diagnóstico dado por especialistas em uma mesa redonda realizada na última quinta-feira (28/07), durante a 74ª Reunião Anual da SBPC.

Participaram do evento, Mauro Del Grossi, professor da Universidade de Brasília (UnB); Rubem C. Araújo Guedes, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Silvio Crestana, da Embrapa Instrumentação, de São Carlos; e Nathalie Beghin, do Instituto de Estudos Socioeconômicos, o INESC. A mediação foi realizada pela vice-presidente da SBPC, Fernanda Sobral.

Abrindo as falas, o professor Mauro Del Grossi, da UnB, criticou o fato de que o último mapeamento nacional sobre a fome foi realizado apenas em 2018, e trouxe dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN).

Entre os pontos mais agravantes, o documento apontou que só 4 entre 10 famílias conseguem acesso pleno à alimentação e que mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau. Ao todo, estima-se que fome atinge, hoje, mais de 33 milhões de pessoas. “Regredimos a um cenário pior do que nos anos 1990”, alertou Del Grossi.

A grave situação foi reforçada por Silvio Crestana, da Embrapa Instrumentação, que destacou a importância das instituições de Ciência, Tecnologia e Inovação e de Educação para reverter esse panorama. “Nós estamos indo pro espaço e estudando o mundo, não poderíamos ter esse cenário da fome”, criticou.

Para Crestana, o Brasil não conseguirá atingir o índice de fome zero até o ano de 2030 se continuar com a mesma visão governamental. Se quiser atingir este objetivo, o País terá que crescer 28% em produtividade pelos próximos 10 anos. O especialista listou também alguns desafios:

“O Brasil precisa continuar alimentando mais de 800 milhões de pessoas no mundo e continuar gerando mais de US$ 105 bilhões de saldo na balança comercial do agro. É necessário também eliminar a fome na cidade e no campo, a subnutrição, a obesidade e combater o desperdício. Na área de gestão, cabe ao País diminuir a dependência de insumos e melhorar a infraestrutura e a logística e, por fim, incluir cerca de 4 milhões de agricultores não tecnificados, ou seja, realizar a inclusão sócio-digital desse público.”

Fome intencional

Já o professor Rubem C. Araújo Guedes, da Universidade Federal de Pernambuco, trouxe um agravante para além do aumento de miséria e fome: a má alimentação. “O Brasil passou do cenário de desnutrição para o sobrepeso. Ao longo de 40 anos, o índice de pessoas com IMC maior que 30, o que caracteriza a obesidade, aproximadamente dobrou”, destacou.

O especialista criticou a falta de olhar do Governo Federal à problemática, o que se reverte na ausência de políticas públicas contra a ingestão deficiente ou excessiva da população. “Condições ideais de alimentação e nutrição são a base de um desenvolvimento social, esse desenvolvimento leva também a um desenvolvimento científico e tecnológico.”

Representando o INESC, Nathalie Beghin usou sua fala para fazer uma linha do tempo sobre as origens das políticas públicas de combate à fome, que vieram com Getúlio Vargas. Ela destacou que os anos de 2000 a 2010 foram essenciais na mudança de pensamento mundial sobre o tema, pois reconheceram a alimentação como direito fundamental. “No caso do Brasil, o problema da fome era político porque o País produzia alimentos que davam para toda a sua população, mas não distribuía.”

Entre as principais medidas no combate à fome nesse período estão a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e a criação do Fome Zero e de mais 30 iniciativas federais para erradicação da fome. “Com esse cenário positivo, no Governo Dilma, a fome sai de cena e entra o combate à miséria”, explicou, destacando o papel da população na criação dessas políticas

Um panorama que começou a ser destruído nos últimos seis anos. “O Governo Temer não deixou nada passar pra frente e o Governo Bolsonaro desmontou toda a estrutura política da segurança alimentar. Mas mesmo o Governo Federal acabando com as comissões, a sociedade civil tem se organizado para seguir com os debates. E a participação social faz diferença”, pondera Beghin.

A especialista conclui que o combate à fome e a readequação alimentar tem que ser algo supraministerial, ou seja, algo que envolva diferentes pastas, e que como o Brasil já conseguiu erradicar a fome uma vez, o País já sabe o caminho. “A gente tem que resgatar o passado e manter uma linha para o futuro. Como é que uma das maiores economias produtoras de alimentos do mundo tem esses indicadores? A fome é um projeto político.”

Rafael Revadam – Jornal da Ciência