Brasil precisa refletir sobre seu processo de Independência, aponta Fernando Novais

Realizada pela SBPC, conferência com o historiador marcou a abertura de um calendário sobre análises históricas do País, preparando para a realização do Dia Nacional de Defesa da Democracia

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Na última quarta-feira, 6 de setembro, véspera do Dia da Independência do Brasil, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) realizou uma conferência com o historiador e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), Fernando Antonio Novais. Intitulado “Independência: historiografia e história”, o encontro teve como objetivo refletir sobre as origens da narrativa construída sobre a independência brasileira e como ela está estritamente atrelada ao conceito de nação.

Com mais de 60 anos de atuação, Novaes é uma das principais figuras que analisam a relação entre Brasil e Portugal. A sua tese de doutorado, intitulada “Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial”, se tornou um clássico da historiografia brasileira. O professor também tem passagens em universidades de Portugal e dos Estados Unidos, além de ministrar cursos em instituições da França e da Bélgica.

Evento inicia programação para o Dia de Defesa da Democracia

A abertura do evento foi realizada pelo presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, que também foi o responsável pela mediação da conversa com Fernando Novais. Ao iniciar o debate, Janine Ribeiro afirmou que se tratava da primeira atividade de um calendário para refletir sobre a criação do Dia Nacional de Defesa da Democracia.

“Com este evento, a gente começa a esquentar os tambores para uma iniciativa que nasceu na comunidade científica brasileira, mas não é só dela, que é a ideia de um dia de luta pela democracia brasileira. Essa proposta emanou da SBPC no primeiro semestre deste ano, e mais de 100 entidades se juntaram a ela, como a Academia Brasileira de Ciências, a Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), a Associação Brasileira de Imprensa, o Instituto Vladimir Herzog e várias outras entidades.”

Janine Ribeiro explicou que o projeto de instituir um Dia Nacional de Defesa da Democracia surgiu por conta das tensões dos últimos anos e da falta de um ensino contínuo sobre o que foi o período ditatorial no Brasil e no mundo, e quais são as ameaças que o autoritarismo político traz à democracia.

“A ideia de criação dessa data veio a partir da constatação de que o Brasil não fez uma educação política decente depois da queda da ditadura militar. Ao contrário, como se diz em bom português, ‘passou o pano’ para os crimes de violência cometidos naquele período. Um dos resultados disso foi que muitas pessoas passaram a ter uma visão quase que fantasiosa, falsa, do que foi o período ditatorial, a ponto de termos hoje, inclusive, jovens clamando por intervenção militar”, complementou.

Para a SBPC e as demais entidades envolvidas, o Dia Nacional de Defesa da Democracia deve ser incluído no calendário nacional, para que, assim, o país se recorde da primeira grande manifestação nas ruas em resposta ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, e contra o Ato Institucional número 5, realizada no dia 31 de outubro daquele ano.

“Nós sentimos que é responsabilidade dos educadores lutar para que haja uma boa educação no tocante aos valores éticos básicos do convívio humano, esses valores que estão na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, e em muitos outros documentos. Quantas vidas não foram ceifadas pela ditadura brasileira e pelas ditaduras mundo afora? Para nós, é muito simbólica a necessidade de uma união muito forte em prol dos valores democráticos, que andaram tão espezinhados, condenados, tão criticados e sendo alvos de tanto ódio nos últimos anos.”

Entre feudo e reino

whatsapp-image-2023-09-06-at-16-14-35Iniciando sua fala, o historiador Fernando Novais disse que é necessário refletirmos sobre as ações do passado e como elas têm peso no Brasil de hoje. O professor também apontou como a narrativa de Independência foi e segue sendo construída,

“O Brasil não foi descoberto, porque não estava encoberto, e não estava encoberto por um motivo muito simples: ele não existia. Portanto, não podia estar nem coberto nem descoberto. As considerações sobre o descobrimento do Brasil passam por questões como o anacronismo e o eurocentrismo da ideia de descoberta.”

Novais comentou que as reflexões sobre o que é o descobrimento de países, suas independências, entre outras definições, ganharam mais força com a chamada Nova História.

“A historiografia moderna pode caracterizar-se por duas vertentes. A primeira é a abertura de novos temas, e a segunda é a desconceitualização. Essa desconceitualização veio da crise dos paradigmas nos anos 1970 e 1980 do século passado, e levou a uma discussão teórica nas Ciências Humanas e na Filosofia. Entre os historiadores, eles decidiram abandonar as grandes visões e passaram a cuidar de temas mais restritos, mais recortados, para aprofundá-los, o que predomina até hoje na historiografia. E qual é o objeto do discurso do historiador? O acontecer humano.”

Apesar da mudança na História Nova, o tema da Independência, não só a do Brasil, mas da história em geral, não foi um tema privilegiado por essa mudança de pensamento, já que a Independência por si só é um dos grandes temas, que sempre apareciam nos olhares dos historiadores. O que se muda, então, são os recortes e reflexões sobre a temática. “Na historiografia brasileira, a Independência não deixou de ser tratada, mas não foi um dos temas mais tratados”, complementou o pesquisador.

Mas como e por que existe este olhar para os processos de Independência? Como explicou Novais, trata-se de um fenômeno histórico para refletir as narrativas construídas, que reforçam a definição de nação.

“Toda nação quer ser eterna. Como não podemos garantir o futuro, já que a história do futuro é matéria dos filósofos, procura-se raízes do passado. E como é que se manifesta isso na história do Brasil? A viagem de Cabral vira a viagem do descobrimento, e toda a colonização passa a ser recontada, começa a ser vista como algo destinado a se transformar numa nação.”

Entretanto, um dos desafios da historiografia é entender que cada nação nasce de uma forma. “A individualidade nacional que se gera varia de uma nação para outra. O que é específico da formação do Brasil? É ter sido colônia, e só se tem Independência quem foi colônia. Se compararmos Brasil com Portugal, Portugal foi um feudo que se transformou em reino e o Brasil é uma colônia que deixou de sê-lo.”

O historiador destaca que a posição de Brasil e Portugal traz um aspecto importante, que é a relação comercial, política e social. “O Brasil foi colônia de Portugal e Portugal foi Metrópole do Brasil. Isso significa que as nossas relações são complexíssimas, diferente de uma relação de uma colônia com a França ou com a Inglaterra, por exemplo.”

Outro ponto trazido pelo historiador foi como essa relação entre Brasil e Portugal impactou na definição do que é ser brasileiro.

“Se pararmos para pensar, a terminação ‘eiro’ é usada para fins profissionais: açougueiro, pedreiro, por exemplo. Brasileiro significava o quê? Comerciante de pau-brasil? No final do século XVII, começou a aparecer a palavra “reino”, que era designada ao português nascido em Portugal. Quer dizer, eles tinham consciência daquilo que eram, e nós tínhamos consciência daquilo que não éramos.”

Para o pesquisador, é importante, no período de reflexão da Independência do Brasil, entender que ela veio de um Brasil como colônia, onde a classe dominante não é a elite dirigente, ao contrário, a elite dirigente é a Metrópole. Compreender isso é entender quem fez a Independência de cada lugar e seu porquê.

“A separação da Metrópole com a Colônia na América espanhola foi uma guerra, uma revolução, e na América portuguesa foi uma conciliação dinástica, um acordo. Isso não quer dizer que a nossa separação não tenha sido importante, ela é importante, sim. Mas é importante entendermos esse ponto para entendermos a nossa autodeclaração.”

Finalmente, o prof. Novais elaborou quais independências se fizeram com escravidão (Brasil e Estados Unidos), e quais acarretaram a abolição (América Hispânica, de modo geral), assinalando como essa marca afetou nossa história subsequente.

A palestra completa com o historiador Fernando Novais está disponível no canal do Youtube da SBPC.

Rafael Revadam – Jornal da Ciência