Brasil terá sempre sua democracia ameaçada se não olhar para o golpe de 1964, refletem especialistas

Evento realizado pela SBPC debateu quais os caminhos do País para trazer justiça às vítimas da ditadura militar; participantes repreenderam falas de Lula e a falta de articulação do Ministério da Defesa

60 anos do golpe

No último domingo, 31 de março, o golpe militar de 1964, que instaurou uma ditadura de duas décadas no Brasil, completou 60 anos. Para refletir sobre de que forma esse passado obscuro ainda ameaça a democracia brasileira, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) realizou um debate especial com perseguidos políticos, exilados e pesquisadores que se debruçam a olhar para este período de repressão.

O evento foi realizado nessa segunda-feira, 1º de abril, e contou com as participações de Cid Benjamin, jornalista e líder estudantil nos movimentos de 1968; Rosa Freire D’Aguiar, jornalista; Carlos Fico, professor titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador sobre a ditadura militar; e Helena Serra Azul Monteiro, professora titular da Universidade Federal do Ceará (UFC), presa e torturada pelo regime militar em 1968 e 1972. A mediação foi do presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro.

Em sua fala durante a abertura, Janine Ribeiro afirmou que não se trata de comemorar o período, mas sim, muito pelo contrário, de destacar como o Brasil ainda vive sob ameaças autoritárias, um entendimento que deveria vir do próprio Governo Federal.

“Nós não temos uma frente de trabalho no País para a memória desse período e, por outro lado, o fato de o Brasil não ter feito um ajuste de contas com esse passado, com punição dos criminosos,  permitiu que a ameaça da tirania, da ditadura, ressurgisse nos últimos anos”, alertou o presidente da SBPC.

Professor da UFRJ e pesquisador sobre a ditadura militar, Carlos Fico discorreu sobre o que o que foi o ato do golpe de 1964 e a ditadura militar que se seguiu por 21 longos anos. Para muitos, não era claro que aquele movimento geraria uma repressão por décadas – e isso explica o apoio da sociedade civil naquele contexto.

“Muita gente apoiou o golpe de 1964 na expectativa de que aquele movimento se equivalesse a outros tantos golpes ou tentativas de golpe que ocorreram desde a Proclamação da República. Então, essas pessoas apoiaram o golpe de 1964 na expectativa de que fosse assim: haveria uma intervenção militar e rapidamente se voltaria ao normal entre aspas”, observou.

Na época, os próprios militares golpistas declararam que se tratava apenas de exigir a conclusão do mandato do ex-presidente Jânio Quadros, que tomou posse em 1961 e logo renunciou. “De fato, quando o golpe foi efetuado, o ato institucional, que de alguma maneira regulamentou aqueles primeiros momentos do arbítrio, manteve a eleição presidencial de 1965. Por isso que eu costumo dizer repetidamente que há uma diferença entre o golpe e a ditadura militar. Quando o golpe foi dado, não se sabia, obviamente, que aquele golpe se tornaria o início de uma ditadura de 21 anos”, comentou Fico.

O pesquisador complementou que a ideia de o golpe ser uma medida temporária rendeu apoios importantes. “Muitos setores da sociedade, que no futuro se tornariam grandes opositores da ditadura militar, apoiaram o golpe. Entidades como Associação Brasileira de Imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil”, apontou.

Mudanças na Constituição são necessárias para impedir novas intervenções militares

Segundo o especialista Carlos Fico, uma das medidas necessárias para o País superar o período é a alteração do artigo nº 142, que dispõe sobre o papel das Forças Armadas na estrutura política do País.

“Todos os episódios de crise institucional brasileira, desde a Proclamação da República até o atentado de 8 de janeiro de 2023, foram causadas com interferência de militares. Um dos padrões recorrentes desses momentos é a suposição equivocada, por parte de militares, de que o artigo 142, que atribui às Forças Armadas a garantia dos poderes constitucionais, consiste numa licença para intervenções políticas.”

Presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro demonstrou preocupação com o artigo e afirmou que o tema será encaminhado ao conselho da entidade, para que ela se manifeste adequadamente a respeito desse assunto.

Já a jornalista Rosa Freire D’Aguiar, que viveu na França como correspondente internacional por um período da ditadura, onde conheceu brasileiros exilados, como o economista Celso Furtado, com quem se casou, uma das questões em aberto desde o golpe de 1964 é entender como esse período afetou suas vítimas.

“Em contato com vários exilados, de vários países, de momentos históricos diferentes e de grupos distintos, eu percebi que o exílio representa uma ruptura profunda. Ele obriga mudanças. Evidentemente, há mudanças de rotina, mas o exílio vai mudando a própria pessoa. Existe uma espécie de adaptação do pensamento dos intelectuais, dos professores, dos sindicalistas exilados. O exílio muda a percepção dessas pessoas sobre o Brasil e suas próprias expressões”, analisou.

A jornalista destacou que a pessoa exilada tende a manter uma ligação muito forte com sua pátria, e não consegue se desvencilhar completamente do vínculo com seu país de origem. “Essa ligação com o Brasil não se perde. E ela é tão grande que, de certa forma, ela passa a se sentir como um ‘impatriado’.”

A vivência deste período também foi compartilhada por Helena Serra Azul Monteiro, professora titular da Universidade Federal do Ceará (UFC), que foi presa e torturada pelo regime militar em 1968 e 1972. Para os militares, Helena era conhecida como Helena Concentração, e seu marido, Francisco Monteiro, como Chico Passeata – ambos, acusados de crimes contra a pátria.

“Em 1968, se intensificaram as manifestações mais violentas, com repressão e tiroteio. Eu e o Chico namorávamos desde a adolescência e tínhamos decidido nos casar antes do AI-5. [Ato Institucional n.º 5, decretado por militares em 1968 e que intensificou o autoritarismo militar]. Só que quando veio o AI-5, os militares invadiram as nossas casas. E qual era a grande denúncia contra a gente? A participação no movimento estudantil.”

Monteiro pontuou que, assim como pouco se fala sobre os impactos do exílio, também não se comenta sobre o que era viver como clandestinos em seu próprio país. “Nós tivemos que ir para a clandestinidade, e não se fala muito do que é a clandestinidade. É algo terrível. Você não podia ter contato com família, tinha que trocar seu nome, além de haver um choque cultural também. Eu fiquei 1 ano em Pernambuco e fui presa grávida, meu filho nasceu na prisão”, relembrou.

A professora destacou algumas medidas pontuais, principalmente realizadas em universidades, que tentaram, de alguma forma, fazer justiça às vítimas do golpe de 1964. Entre as iniciativas está o curta “Vou contar para os meus filhos”, que traz depoimentos de vítimas e está disponível no YouTube. Entretanto, a pesquisadora destacou a urgente mobilização do Governo Federal para isso. “São necessários locais de memórias. Sem eles, o Brasil não vai avançar. Não é uma questão de revanche, é uma questão de direito”, frisou.

Encerrando as falas do dia, o jornalista Cid Benjamin destacou também a sua vivência no movimento estudantil. “Eu sou do que costumam chamar de geração 68. Fiz minha formação política naquele crescimento de movimentos de massas, entrei na universidade em 1967, participei dos movimentos estudantis em 1968, depois, a partir do AI-5, integrei a resistência armada contra a ditadura, fui preso e fiquei 10 anos no exílio”, revelou.

O profissional lamentou as declarações recentes do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que orientou os ministérios a não realizarem atos alusivos ao golpe de 1964 e disse preferir não remoer o passado, e a falta de ações concretas para reparar o período do autoritarismo militar.

“É lamentável a posição do Lula, por exemplo, quando ele diz que não foram os atuais generais que torturaram e deram o golpe. Mas ninguém está pensando em colocar os atuais generais na prisão! Não se trata disso. Aliás, de fato são poucos os generais de 1964 que ainda estão vivos. Agora, virar essa página sem lê-la, sem apresentá-la ao País é deletério, é muito ruim. A gente está perdendo, ao ter esse tipo de comportamento, uma enorme oportunidade de entrar nesse debate: qual é o papel do Exército no regime democrático? E como é que a gente pode solidificar a democracia?”

Benjamin reforçou as palavras de Janine Ribeiro, destacando que olhar para o golpe de 1964 não é remoer o passado, mas construir o futuro do Brasil.

“Eu lamento que Lula tenha essa postura, lamento o ministro da Defesa que ele nomeou, [José Mucio Monteiro Filho], alguém que não tem condições de exercer esse cargo. Agora, acho que essa participação deletéria do Exército e das Forças Armadas no que diz respeito à democracia não vai ser superada se não se discutir francamente o que aconteceu, acabar com o artigo 142 da Constituição e abrir esse debate para a sociedade. A questão da Defesa e das Forças Armadas não é uma questão dos militares, é uma questão do País.”

O debate “60 anos do golpe militar: sem memória não há futuro” está disponível na íntegra no canal do YouTube da SBPC.

Rafael Revadam – Jornal da Ciência