Carta aberta às autoridades públicas de Santa Catarina, aos profissionais de saúde e à população catarinense sobre suposto “tratamento precoce” da covid-19

“O esforço de cientistas de todo o mundo tem permitido a contínua produção de novos conhecimentos. Protocolos e condutas clínicas devem ser reavaliados continuamente, mas sempre com ética e responsabilidade, baseando-se nas melhores evidências científicas disponíveis no momento”, afirmam a SBPC-SC e mais 20 instituições, associações, grupos e organizações signatárias do documento

Confira a carta na íntegra:

À medida em que a capacidade das UTIs de Santa Catarina chega ao limite para tratamento da Covid-19, duas importantes cidades do estado, Itajaí e Balneário Camboriú, e um grupo de médicos e médicas catarinenses apoiam supostos “protocolos de tratamento precoce” da Covid-19 desprovidos de fundamentos científicos. Tais iniciativas estimulam a aplicação de recursos de forma equivocada, geram falsas expectativas, falsa sensação de segurança na população, impactam negativamente na adesão às medidas reconhecidamente eficazes de proteção e prevenção do SARS-CoV-2, e, ainda, podem causar efeitos colaterais significativos.

Os municípios referidos estão implantando o que chamam de “tratamento profilático ao coronavírus” com o uso de ivermectina, e a carta dos profissionais sugere sua ampliação para todo o estado. Destaca-se que até o momento há apenas um estudo indicando que, em laboratório (in vitro), a ivermectina pode inibir a replicação do vírus SARS-CoV-2. No entanto, isso apenas ocorre em doses muito superiores às aprovadas e seguras para uso em seres humanos. Esse mesmo medicamento já foi proposto para possível tratamento de outras infecções como HIV, dengue, influenza e Zika Vírus, mas em nenhum caso apresentou resultado antiviral eficaz e foi descartado em todas essas oportunidades. Além disso, na carta mencionam “tratamento precoce da Covid-19” com vitaminas C e D, oligominerais como o Zinco e outros medicamentos, tais como Cloroquina, Hidroxicloroquina e Azitromicina que têm ações comprovadas contra outras doenças, mas não contra Covid-19. Os signatários da carta não apontam sequer um estudo de qualidade que embase tais proposições.

Convém ressaltar que devido à alta taxa de recuperação espontânea da Covid-19 (cerca de 80% – 85%), as eficácias terapêuticas desses produtos indicados só podem ser estabelecidas por meio de pesquisas clínicas com grupos de comparação. Logo, o uso dessas substâncias para o tratamento de Covid-19 seria experimental e só poderia ser realizado como parte de protocolos de pesquisa clínica para determinar se, de fato, possuem efeitos clínicos comprovados para a doença em estudo. A Sociedade Brasileira de Infectologia, em informe publicado em 30/06, menciona que “Os antiparasitários ivermectina e nitazoxanida parecem ter atividade in vitro contra a SARS-CoV-2, porém ainda não há comprovação de eficácia in vivo, isto é, em seres humanos. Muitos dos medicamentos que demonstraram ação antiviral in vitro (no laboratório) não tiveram o mesmo benefício in vivo (em seres humanos). Só estudos clínicos permitirão definir seu benefício e segurança na Covid-19.” Além disso, Schmith et al. (2020) afirmam que, até o presente, não foi realizado estudo clínico com ivermectina e placebo em pacientes com Covid-19, o que é um quesito importante de comparação segura. As autoras apontam que a dose ideal de ivermectina não foi estabelecida e que mesmo doses de ivermectina de até 120 mg foram administradas apenas a um pequeno número de indivíduos. A dosagem diária desse medicamento por períodos mais longos (por exemplo, 14 dias) na dose aprovada só foi estudada em pequenos estudos para infecções graves. Dados apresentados por Momekov & Momekova (2020) mostram a gravidade da constatação de que os dados farmacocinéticos disponíveis de estudos de dosagem clinicamente relevantes e excessivos indicam que as concentrações inibitórias de SARS-CoV-2 provavelmente não são atingíveis em humanos.

O conteúdo da carta e as ações das prefeituras citadas vão na contramão dos órgãos reguladores de medicamentos do Brasil e do mundo, os quais pautam-se em critérios científicos para garantir a segurança dos pacientes e o bem-estar da população. Cita-se como exemplo a Food and Drug Administration (FDA), agência federal reguladora dos Estados Unidos da América, que em 15 de junho de 2020 revogou a autorização de uso emergencial da cloroquina e da hidroxicloroquina para tratamento da Covid-19 fora de ambientes hospitalares e fora de contexto de pesquisa (FDA, 2020a). Além disso, a FDA não indica o uso da ivermectina para prevenção ou tratamento da Covid-19 e, portanto, não autoriza o uso off label desta para Covid-19 (FDA, 2020b). A própria FDA aponta alguns dos efeitos colaterais que podem estar associados à ivermectina, os quais incluem erupção cutânea, náusea, vômito, diarreia, dor de estômago, edema facial ou dos membros, eventos adversos neurológicos (tonturas, convulsões, confusão), queda súbita da pressão arterial, erupção cutânea grave potencialmente exigindo hospitalização e lesão hepática (hepatite) (FDA, 2020b).

O reposicionamento de medicamentos existentes para uso no tratamento da Covid-19 é uma estratégia importantíssima, mas só é viável quando há comprovação de eficácia e segurança de uso – com estudos de gradientes de concentração clinicamente relevantes e garantia de maior benefício em comparação à não utilização.

Cabe observar que a solicitação dos médicos e médicas em carta aberta é problemática também em outros pontos. A requisitada autonomia médica sempre esteve preservada, pois não é vedado ao profissional médico prescrever vitamina C ou D, ou nenhum dos medicamentos citados; o que não se pode é assumir que estes são tratamentos precoces eficazes contra a Covid-19. Portanto, é imprudente o apoio a protocolos para que toda população tenha acesso facilitado a tratamentos os quais não tiveram eficácia comprovada especificamente contra a Covid-19. Neste caso, a autonomia que está em risco é a dos pacientes, que tomariam decisões sobre seu tratamento baseadas em opiniões e não em fatos comprovados cientificamente. Ao serem estabelecidos protocolos municipais, estaduais ou nacionais sem comprovação científica contraria-se a lógica da medicina baseada em evidências e os próprios princípios da ética médica, tais como primum non nocere (em primeiro lugar, não cause dano) e in dubio abstino (na dúvida, abstenha-se de tratar). Portanto, além de imprudente, o referido apoio ao protocolo é antiético e irresponsável.

De fato, o cenário de Santa Catarina é preocupante e requer ações coerentes e baseadas nas melhores evidências. Exatamente por isso chama a atenção que em nenhum momento os médicos e médicas mencionam na carta, e os prefeitos em seus comunicados, ao menos uma medida eficaz para o controle da Covid-19, tais como testagem em massa e contact-tracing para isolamento e quarentena, distanciamento social e uso de máscaras por toda a população. Até o momento, essas são as únicas medidas com evidências científicas e aplicadas em diferentes países que possibilitaram reduzir o número de infecções, de internações hospitalares, de óbitos e a reabertura de setores da economia. Concordamos com os médicos e médicas que assinam a carta que “esse momento exige que façamos o tratamento conforme o que temos de evidências disponíveis até então”. Mais uma vez, e exatamente por isso, devemos fazer uso de medidas que de fato irão ajudar no enfrentamento da Covid-19.

Uma última, mas não menos importante questão: as propostas/ações aqui em pauta não prezam pelo bom uso do recurso público, pois drenam investimentos que deveriam ser aplicados na ampliação das ações que comprovadamente auxiliam no controle da epidemia. Acabam, assim, por potencializar e agravar a crise sanitária que vivemos, causar efeitos colaterais indesejados em quem se submeter ao suposto “protocolo profilático”, além de retardar o controle da epidemia e, consequentemente, o retorno pleno dos setores econômicos e da vida social.

O esforço de cientistas de todo o mundo tem permitido a contínua produção de novos conhecimentos. Protocolos e condutas clínicas devem ser reavaliados continuamente, mas sempre com ética e responsabilidade, baseando-se nas melhores evidências científicas disponíveis no momento.

 

Florianópolis, 07 de julho de 2020.

 

Assinam esta carta:

 

Departamento de Saúde Pública – UFSC

Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva – UFSC

Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco

Sociedade Brasileira de Bioética – Regional Santa Catarina

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – Secretaria Regional de SC

Sociedade Brasileira de Virologia (SBV)

Associação Catarinense de Plantas Medicinais

Programa de Pós-graduação em Farmacologia – UFSC

Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e do Desenvolvimento – UFSC

Programa de Pós-Graduação em Biologia de Fungos, Algas e Plantas – UFSC

Programa de Pós-Graduação em Bioquímica – UFSC

Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia e Biociências – UFSC

Programa de Pós-Graduação em Ecologia – UFSC

Programa de Pós-Graduação Multicêntrico em Ciências Fisiológicas – UFSC

Programa de Pós-Graduação em Neurociências – UFSC

Grupo de Pesquisa em Farmacoepidemiologia -GPFAR/UFSC

Núcelo de Estudos em Democracia e Associativismo – NEDAS/UFSC

Núcleo de Estudos em Gênero, Diversidades Sexuais e Saúde – EPICENES/UFSC

Núcleo de Pesquisa e Extensão em Bioética e Saúde Coletiva – NUPEBISC/UFSC

Núcleo de Estudo em Sociologia, Filosofia e História das Ciências da Saúde – UFSC

Núcleo de Extensão e Pesquisa em Avaliação em Saúde – NEPAS/UFSC

Referências:

FDA, 2020a. https://www.fda.gov/news-events/press-announcements/coronavirus-covid-19-update-fda-revokes-emergency-use-authorization-chloroquine-and

FDA, 2020b. https://www.fda.gov/animal-veterinary/product-safety-information/faq-covid-19-and-ivermectin-intended-animals

Schmith, V et al., 2020. The Approved Dose of Ivermectin Alone Is Not the Ideal Dose for the Treatment of COVID-19 : https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.21.20073262v1

Momekov, G; Momekova, D. Ivermectin as a potential COVID-19 treatment from the pharmacokinetic point of view: antiviral levels are not likely attainable with known dosing regimens. https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.11.20061804v2

Sociedade Brasileira de Infectologia. Informe da Sociedade Brasileira de Infectologia sobre o novo coronavírus n. 15: uso de medicamentos para Covid-19, de 30/06/2020. Disponível em: https://www.infectologia.org.br/admin/zcloud/125/2020/06/ddb8adbedf98c5bed371a929338e0df2acc49af1becb494f5a15dd38f901c760.pdf . Acesso em: 07 jul. 2020.

SBPC-SC