Carta na Science lamenta “ciência brasileira em chamas”

Grupo de mais de 20 pesquisadores publica texto na renomada revista e diz que incêndio que destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro é metáfora do estado atual da ciência no Brasil. Reportagem da DW Brasil destaca que às vésperas das eleições, a SBPC tenta se aproximar de candidatos para debater os recursos para a ciência. Uma das metas é obter apoio para a revogação da lei que congelou o teto dos gastos públicos pelos próximos 20 anos. “Isso é comprometer o futuro”, pontua Ildeu Moreira, presidente da entidade

O incêndio que destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro no início do mês ressoa no mundo científico fora do Brasil. Numa carta publicada nesta quinta-feira (27/09) na revista Science, 21 pesquisadores afirmam: o fogo que consumiu os arquivos históricos é uma metáfora do estado atual da ciência no país.

“É importante a manifestação dos cientistas para dar um alerta à comunidade internacional”, diz à DW Brasil Luiz Rocha, um dos autores e curador na Academia de Ciências da Califórnia.

Na carta, os autores apontam a queda contínua de repasses ao Museu Nacional registrada nos últimos cinco anos e a falta de investimentos em segurança do prédio e dos itens históricos.

“É um passo gigantesco para trás”, comenta Rocha sobre os sucessivos cortes em órgãos e agências federais que mantêm pesquisas ativas no Brasil. “Vemos uma diminuição na quantidade de bolsistas e de financiamento de uma forma incrível”, critica.

Antes do Museu Nacional, que guardava o acervo mais importante da história do país, o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, foi completamente destruído por um incêndio em 2015. Em 2010, pesquisadores lamentaram o sumiço de 80 mil espécies conservadas depois do fogo no Instituto Butantan, em 2010.

“Em ambos os casos, a falta de investimento em infraestrutura foi apontada como causa”, diz a carta.

Os autores da carta são ligados à Universidade Cornell, Universidade da Flórida e à Academia de Ciências da Califórnia, nos Estados Unidos, além da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O texto diz que a magnitude da perda do Museu Nacional prejudica não apenas o Brasil, mas o mundo.

Leia a reportagem na íntegra: Deutsche Welle

 

Leia a tradução da carta:

Falta de apoio científico prejudica o Brasil

Em 2 de setembro, o mundo assistiu horrorizado ao Museu Nacional do Brasil, abrigo de um vasto acervo de mais de 20 milhões de artefatos culturais e de biodiversidade, ser engolido por chamas (“Em uma previsão antecipada da tragédia, o fogo consome o museu do Brasil.” H. Escobar, 7 de setembro, p. 960). As extensas coleções de história natural do museu, meticulosamente acumuladas ao longo de mais de dois séculos, documentaram a mudança na identidade e distribuição das espécies ao longo do tempo, registraram a cultura e as línguas nativas dos habitantes sul-americanos e arquivaram a origem e o progresso histórico de uma nação. A magnitude dessa perda é impressionante – não apenas para o Brasil, mas para o mundo. O avanço científico é baseado em blocos de construção do passado e, sem esses componentes, os cientistas ficam sem pontos de referência. As coleções de museus são a base sobre a qual reconhecemos a novidade cultural e científica à medida que nos esforçamos para entender e melhorar a condição humana, para avançar em nossa compreensão de como as peças da natureza surgiram e se encaixam e até mesmo para prever o futuro ecológico e evolutivo da biodiversidade do planeta (1).

O financiamento para o museu diminuiu substancialmente nos últimos 5 anos (2) e os editais de investimentos renovados para reformas, segurança e proteção têm sido ignorados há décadas (3). Nesse sentido, o Museu Nacional é uma metáfora apropriada para o estado atual da ciência no Brasil: os líderes de todos os níveis não conseguiram fornecer nem mesmo a infraestrutura mais básica e crucial para preservar coleções genuinamente inestimáveis e recursos culturais. Este incêndio no Museu Nacional segue a perda de 80.000 exemplares no incêndio que destruiu as coleções do Instituto Butantan, em 2010 (4), e a perda completa do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, em 2015 (5), ambos também atribuídos a investimentos reduzidos em infraestrutura. Nos últimos anos, houve um grande declínio no orçamento para pesquisa científica básica e treinamento de estudantes (6). A perda de coleções únicas e insubstituíveis, devido ao investimento federal medíocre na ciência, joga mais sal sobre ferida crescente.

Há alguma esperança entre as cinzas. Muitas das coleções biológicas, incluindo vertebrados, a maioria dos invertebrados marinhos e plantas, bem como livros raros foram poupados porque estavam em edifícios diferentes. Felizmente, nenhuma vida humana foi perdida. Curadores e funcionários do museu estão trabalhando 24 horas por dia para reorganizar e abrigar colegas deslocados e manter o ensino e a orientação de seus programas de pós-graduação. O governo brasileiro prometeu fundos e infraestrutura para apoiar a reconstrução (7, 8), oferecendo uma oportunidade para o Brasil corrigir os erros do passado.

Essa perda trágica ressoa além do Brasil. Coleções de museus são tesouros nacionais atemporais, que representam nossas histórias, culturas e conquistas científicas. Toda instituição e governo devem refletir e prestar atenção a esse momento triste. Precisamos investir e proteger nossos museus e acervos para o benefício da ciência e da sociedade em todo o mundo.

Kelly R. Zamudio,1* Alexander Kellner,2 Cristiana Serejo,2 Marcelo Ribeiro de Britto,2 Clovis B. Castro,2 Paulo A. Buckup,2 Débora O. Pires,2 Marcia Couri,2 Adriano Brilhante Kury,2 Irene Azevedo Cardoso,2 Marcela L. Monné,2 José Pombal Jr.,2 Cátia Mello Patiu,2 Vinicius Padula,2 Alexandre Dias Pimenta,2 Carlos Renato Rezende Ventura,2 Eduardo Hajdu,2 Joana Zanol,2 Emilio M. Bruna,3 John Fitzpatrick,4 Luiz A. Rocha5

1Department of Ecology and Evolutionary Biology and Museum of Vertebrates, Cornell University, Ithaca, NY 14853, USA. 2 Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. 3 Center for Latin American Studies, and Department of Wildlife Ecology and Conservation, University of Florida, Gainesville, FL 32611, USA. 4 Laboratory of Ornithology, Cornell University, Ithaca, NY 14850, USA. 5 California Academy of Sciences, San Francisco, CA 94118, USA.

Referências

  1. L. A. Rocha et al., Science 344, 814 (2014).
  2. M. Brandão, “UFRJ e governo federal divergem sobre verbaenviada ao Museu Nacional” Agência Brasil 2018); http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-09/ufrj-e-governo-federal-divergem-sobre-verba-enviadaao-museu-nacional.
  3. M. A. Canônico, “Bicentenário Museu Nacional, o mais antigo do país, tem problemas de manutenção,” Folhade São Paulo (2018); https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/05/bicentenario-museu-nacional-omais-antigo-do-pais-tem-problemas-de-manutencao.shtml [in Portuguese].
  4. J. Kemech, Lancet 375, 2061 (2010).
  5. V. Sreeharsha, “Brazil: Fire destroys São Paulomuseum,” The New York Times (2015); www.nytimes.com/2015/12/22/world/americas/brazil-fire-destroyssao-paulo-museum.html.
  6. A. Petherick, Nature 548, 249 (2017).
  7. M. Brandão, “MPs criam agência para administrar museuse fundos patrimoniais,” Agência Brasil (2018); http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-09/mps-criam-agencia-para-administrar-museus-e-fundospatrimoniais[in Portuguese].
  8. M. Tokarnia. “Ministro da Educação diz que ofereceráapoio ao Museu Nacional,” Agência Brasil (2018); http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-09/ministro-da-educacao-diz-que-oferecera-apoio-aomuseu-nacional [in Portuguese]. 10.1126/science.aav3296