Ciência e reconstrução do tecido social

Os laços sociais foram discutidos sob a ótica do impacto da ciência na sociedade durante o segundo dia da reunião temática "Ciência Básica na Fronteira do Conhecimento", promovida pela ABC e pela SBPC nos dias 5 e 6 de março, como parte dos encontros preparatórios para a 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação

O segundo dia de atividades da reunião temática “Ciência Básica na Fronteira do Conhecimento”, promovida pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), trouxe discussões sobre a dissolução e recomposição dos laços sociais. O encontro, realizado nos dias 5 e 6 de março, é parte dos preparativos para a 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (5ª CNCTI), agendada para junho, em Brasília.

Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, abriu os debates do dia com uma análise sobre a ruptura do tecido social no cenário recente, em sequência à crise econômica iniciada em 2008 nos Estados Unidos. Essa crise, segundo ele, favoreceu a extrema direita, corroeu o poder de compra dos cidadãos comuns, aumentou o desemprego e criou um terreno fértil para o descontentamento social, comparável ao cenário que antecedeu a ascensão do fascismo no século passado.

“Perdeu-se, assim, o referencial comum, que é uma questão fundamental para o convívio social. Se não tivermos um referencial comum da humanidade, fica difícil estabelecermos um diálogo. Aquilo que se dava como identidade nacional, passa a ser identidade de grupo, e esses grupos se distinguem pela hipertrofia de seus traços próprios e, também, pela negação dos outros traços. Ficou mais fácil mobilizar as pessoas por esses traços do que mobilizar as pessoas em conjunto. Esse problema torna a relação com a sociedade como um todo muito difícil”, apontou Janine Ribeiro.

Helgio Trindade, professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), complementou a discussão, examinando a ruptura do laço político como um elemento corrosivo no processo democrático. Ele traçou paralelos históricos que remetem às crises do século XX, incluindo o impacto dos regimes nazifascistas na Europa e a ascensão neoliberal nos anos 90, até as consequências da despolitização e do domínio das redes sociais no século XXI, que levaram ao esfacelamento do sistema partidário brasileiro e à ascensão de figuras políticas extremistas, como Jair Bolsonaro. “Bolsonaro foi um reacionário saudosista da ditadura militar, com revanchismo e anticomunismo difuso. Não foi fascista, não dirige partido, não teve nunca proposta de novo partido político. É um reacionário, que volta ao passado para refundar a ditadura militar de 1964. Taxá-lo de fascista foi um erro que o supervalorizou”, concluiu.

Para Tatiana Roque, professora do Instituto de Matemática da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Secretária de Ciência e Tecnologia do município do Rio de Janeiro, a ascensão do extremismo foi uma resposta a uma crise preexistente, com grande força social, para além da força eleitoral. A cientista destacou o papel das novas tecnologias e a crise do bem-estar social. “Tecnologias surgiram no pós-guerra. Mas na época, o avanço tecnológico gerava multiplicação dos postos de trabalho, principalmente pela força dos sindicatos e, também, pela força institucional que fortaleceu a criação de um Estado de bem-estar social. Hoje, a tecnologia substitui mais empregos do que gera. O que vemos hoje não é um progresso inexorável para o bem comum a partir das tecnologias, mas sim, uma oligarquia tecnológica muito persuasiva que tem um sucesso enorme também por falta de contraposição à altura”, avaliou.

Roque, no entanto, enfatizou a importância de responder às novas tecnologias de maneira positiva, através da regulamentação e da criação de novas formas de coesão social. “A questão da regulamentação da IA diz respeito a isso, a como a gente consegue propor novas formas de instituições, coesão social e regulamentação para fazer face às novas tecnologias de uma maneira positiva, propositiva, e não apenas negativa, reativa.”

Se os laços sociais se expressam por meio de certos comportamentos, sua dissolução também. E um sintoma da dissolução dos laços sociais muito evidente no Brasil é a violência. Segundo Sergio Adorno, diferentes formas de violência refletem a divergência de valores na sociedade e a falta de mediadores institucionais. “A gente pode contar a história social do Brasil também como uma história social da violência”, disse o professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Adorno demonstrou como, desde o período colonial até recentemente, diferentes formas de violência foram sendo reproduzidas ao longo da história do País. “A violência revela uma profunda divergência da sociedade a respeito de valores em comum e da proteção de valores fundamentais, com a proteção da vida”, comentou. “Se você fizer hoje uma investigação, do ponto de vista das percepções sociais, a vida tem significados muito diferentes para diferentes grupos sociais – as mulheres têm uma concepção do que é proteger a vida que é diferente do que é para os homens. A violência é uma porta de entrada para entender um pouco desse universo da dissolução dos laços sociais.”

O cientista analisou também como a violência evolui conforme as sociedades se transformam. Um exemplo são os crimes cibernéticos, que são novas formas de violação. O problema, conforme enfatizou Adorno, é que a violência se moderniza, mas o sistema de justiça permanece preso ao passado, não acompanhando o ritmo dessas transformações.

A segunda mesa focou em como reconstruir o laço social desfeito. Renato Janine Ribeiro reiterou a necessidade de encontrar uma base comum para o diálogo como “condição absoluta” para a democracia.

Marilene Correa, diretora da SBPC e professora titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), falou da importância da Amazônia para o Brasil. De acordo com ela, a região representa, ao mesmo tempo, um desafio e uma oportunidade para reconstruir o tecido social brasileiro, desde que se reconheça e enfrente as violências e rupturas sociais específicas da região, bem como a necessidade de integrar as culturas locais nos processos nacionais, em particular, no processo de produção de conhecimento.

“O Brasil quer a Amazônia como um grande laboratório da sustentabilidade do futuro. É possível fazer isso, falta decisão política e um pouco de humildade de quem manda na organização da ciência nacional de reconhecer que houve esforços contínuos de formação de pessoas, de grupos de pesquisa, de fomentos do Estado, e que essa inteligência precisa estar articulada às soluções locais e aos problemas locais. Não há futuro do Brasil sem a Amazônia”, apontou Correa.

O antropólogo e professor titular do Departamento de Antropologia da UFRGS, Ruben Oliven, trouxe o conceito de nação como uma comunidade de sentimentos em constante conflito e transformação: “Não existe nação sem um equilíbrio instável”, sentenciou. Dessas transformações, Oliven abordou os desafios trazidos pelas tecnologias contemporâneas e a emergência dos novos modelos de trabalho, como o Uber, para a coesão social – um exemplo muito simbólico que até deu origem à expressão “uberização do trabalho” para descrever o processo de precarização das relações trabalhistas dos prestadores de serviços de aplicativos digitais. “Boa parte dos motoristas de Uber não quer ser assalariada. Eles não se veem como assalariados, eles não querem ter patrão. Eles querem estabelecer o seu horário. É precarização do trabalho, mas (para eles) tem suas vantagens. É um novo tipo de sociabilidade, novo modelo de trabalho, uma dissolução do laço social.”

Corroborando a teoria de Janine Ribeiro sobre a divisão da nação em grupos com identidades particulares, Oliven apontou a complexidade presente de sermos uma sociedade permeada por essas aglutinações identitárias, invadida por novos atores sociais. “Eu não acho que o laço social esteja se dissolvendo; acho que ele está em transformação, em tensão. Nós não temos mais uma sociedade só; temos vários grupos, as duas coisas: nós temos uma sociedade, só que a gente quer preservar esses grupos. O grande desafio político intelectual é como manter um diálogo entre os vários grupos, em que os vários grupos consigam trocar ideias e conviver pacificamente”, disse.

Mara Telles, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), acredita que a desinformação e o negacionismo se apresentam como barreiras à reconstrução do laço social. Ela falou sobre como a agnotologia – a análise do fenômeno da desinformação socialmente induzida para promover a ignorância – explica o êxito do extremismo no Brasil e a vitória de Bolsonaro para ocupar a Presidência da República entre 2019 e 2022. “A disseminação intencional de distorções contrárias às evidências científicas disponíveis, como ocorreu na pandemia e ocorre também hoje, constitui-se como projeto atrelado aos interesses extra-científicos. Tínhamos de um lado, na pandemia, o governo brasileiro do momento buscando forjar normalidade em tempos mundialmente excepcionais e, de outro lado, milhões de pessoas em busca de informações e de certezas que guiaram suas ações diante de um vírus sobre o qual os próprios cientistas e médicos tentavam aprender.”

A estratégia deliberada de negacionismo desqualifica evidências científicas para favorecer interesses alheios ao bem comum, daí, de acordo com Telles, a necessidade de abordagens amplas de políticas públicas para combater a desinformação. “Divulgar não é suficiente. É um trabalho de todos os Ministérios, que inclui educação e saúde, não apenas a regulação de plataformas que distribuem fake news. O buraco é muito mais embaixo.”

Wilson Gomes se descreveu como um “tretólogo”, um especialista nos conflitos e divergências permanentes que inviabilizam o diálogo. Professor Titular de Teoria da Comunicação na Universidade Federal da Bahia (UFBA), ele acredita que estamos vivendo na “nova era da intolerância”, na qual a dissolução do laço social é marcada pelo ódio e pela polarização política.

“Não tem mais construtores de pontes no Brasil, só tem gente incendiando os navios. Estamos em guerra de todos contra todos. O avanço da extrema direita é um problema, porque trouxe a crise da intolerância, a impossibilidade de ouvir o outro. Cada vez mais se aceita a negação do outro. Fala-se muito sobre o pluralismo, mas as pessoas não sabem mais divergir dos argumentos dos outros, elas se odeiam. As pessoas ainda acham que o outro lado pode ser eliminado”, analisou Gomes. O caminho contrário, apontou ele, seria buscar os acordos fundamentais, “repactuar”.

Como conclusão, o professor Renato Janine Ribeiro comentou a importância do tema da servidão voluntária, que, sem ter sido mencionada explicitamente, pairou na discussão sobre os motoristas de aplicativos e a recusa por parte de muitos desses profissionais à formalização de sua relação com a aquisição de direitos sociais, como o professor Ruben Oliven sustentou, que muitos desses motoristas realmente não querem uma relação profissional desse tipo, como um sinal de que eles estão indo contra os seus próprios interesses.

A discussão contemplou, por fim, a essencialidade de buscar soluções coletivas para os desafios enfrentados pela sociedade e compreender, mais especificamente, os impactos da ciência e da tecnologia no bem-estar social, conforme mencionado por Fernanda Sobral, diretora da SBPC. “Uma preocupação que a 5ª Conferência deve ter é sobre os impactos da Ciência. Eu acho que uma das questões importantes é se verificar sempre os impactos da ciência e das novas tecnologias sobre a sociedade.”

Assista às apresentações neste link.

Daniela Klebis – especial para o Jornal da Ciência