Mais um ano de enfrentamento

Além dos cortes que a área tem sofrido anualmente, especialistas afirmam que as instituições científicas e acadêmicas deverão sofrer novos ataques impostos por políticas conservadoras e excludentes. Veja a reportagem completa na nova edição especial do Jornal da Ciência

A frase de Darcy Ribeiro — “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto” — reflete o sentimento de especialistas e instituições ligadas à área quando analisam medidas tomadas pelo governo federal até aqui e as perspectivas para 2021. Por isso, para eles, o ano será de enfrentamento de obstáculos e retrocessos diante dos cortes orçamentários e da imposição de políticas conservadoras e excludentes. Para piorar a situação, a pandemia, que já causou um prejuízo incalculável à educação no Brasil, principalmente a básica, não dá trégua.

Começando pelo orçamento. A previsão para o Ministério da Educação, que consta do Projeto de Lei Orçamentária 2021 (PLOA), é de R$ 144,538 bilhões, comparado a R$ 142,8 bilhões de 2020. Mas, segundo a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), a dimensão dos cortes fica clara quando analisadas as propostas de receitas discricionárias. Também chamadas de custeio e investimento, estas são as despesas que o governo pode ou não executar, de acordo com a previsão de receitas. O valor para 2021 das despesas discricionárias, de R$ 19,955 bilhões, é 8,61% menor que os R$ 21,837 bilhões da PLOA de 2020. Em 2014 era de R$ 42,9 bilhões.

De acordo com o manual para recuperar recursos de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I), divulgado pela SBPC no começo de março, os orçamentos para as despesas discricionárias das universidades e dos institutos federais foram reduzidos em 17,5% e 16,5%, respectivamente, em comparação com a Lei Orçamentária de 2020.

Segundo análise da Execução Orçamentária do MEC, produzida pela ONG Todos pela Educação, com base no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), a Pasta dispôs de um orçamento de R$ 48,2 bilhões para a educação básica em 2020, dos R$ 144,5 bilhões. O valor é 10,2% menor do que em 2019 e o mais baixo desde 2010. O montante pago efetivamente foi ainda menor, de R$ 32,5 bilhões, em plena pandemia do coronovírus que impôs desafios históricos às escolas, pais, alunos e professores.

Aos cortes orçamentários se somam os ataques de cunho ideológico. Primeiro, a publicação do Edital da Capes “Famílias e Políticas Públicas no Brasil”, em 7 de janeiro, cujas inscrições se encerraram em 15 de março. Segundo, a tentativa de extinção da exigência de gastos obrigatórios com saúde e educação pelo governo via Proposta de Emenda Constitucional 186/2020, batizada de PEC Emergencial. A Constituição diz que estados são obrigados a destinar 25% da receita com impostos à educação. O mesmo percentual vale para os municípios.

A União também tem o dever constitucional de investir pelo menos 18% em educação. Com os cortes promovidos pelo governo, os recursos destas áreas no orçamento federal estão bem próximos do piso. A PEC Emergencial permitiria também a desvinculação do novo Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), causando grande prejuízo para o ensino básico.

No caso da PEC, após uma grande mobilização, o texto do Projeto foi mudado e o relator tirou os pontos que colocariam fim aos pisos constitucionais para investimentos em educação.

“O que se constata na atual gestão do MEC é uma grave ausência de coordenação nacional, de liderança e de gestão”, afirma a segunda edição do relatório anual de acompanhamento ‘Educação Já! ’, produzido também pela Todos Pela Educação. O estudo faz um balanço de 2020 e traz as perspectivas para 2021 sobre o andamento das políticas públicas educacionais.

“Além do desfinanciamento, o MEC tem praticado uma política de privatização”, aponta Geovana Mendonça Lunardi Mendes, presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). “Estamos diante de um governo que tem praticado uma necropolítica, ou seja, uma gestão de morte e de ataque ao sistema público-educação, saúde e assistência social”, critica.

Nesse cenário de caos há pouca notícia boa. Uma delas, frisa Mendes, foi a vitória da aprovação do Fundeb em dezembro, quando a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 4372/20, que regulamenta o repasse da União para redes de ensino com menos recursos. “Mas, nem bem comemoramos, ele já foi atacado com a ameaça da PEC Emergencial, sem falar na falta de orçamento da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)”, pondera.

Para a presidente da Anped, trata-se de uma “articulação para desmontar o sistema de educação”. Mendes alerta ainda para a pauta conservadora e moralista que não se resume ao ‘Edital da Família’, mas abrange também o programa Tempo de Aprender (que tem o objetivo de enfrentar as deficiências de alfabetização), o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) e as escolas cívico-militares. “Muitos dizem que o MEC está inoperante, mas ele está agindo e infelizmente com programas específicos para implementar essa política conservadora”, lamenta.

Mendes também chama a atenção para a militarização nas instituições, por meio de nomeações de pessoas oriundas dos quartéis com pouco preparo técnico e profissional para cargos chave em órgãos como o Conselho Nacional de Educação (CNE) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Além de toda problemática que assola a gestão educacional, a área foi uma das mais atingidas pela a pandemia do novo coronavírus, que afetou ainda mais o acesso à educação, escancarando a desigualdade social no País. “E a educação básica, que sempre foi um setor extremamente complicado e problemático, piorou com a pandemia. Acredito que o MEC poderia ter atuado de uma maneira específica para adaptação de infraestrutura escolar para minimizar as desigualdades e oferecer novas maneiras de aprendizagem, entre eles, acesso remoto”, afirma a antropóloga Miriam Pillar Grossi, professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Para Grossi, um dos problemas a serem enfrentados é o abandono escolar em todos os níveis provocado pela pandemia. “Na graduação, por exemplo, temos muitos alunos egressos de escolas públicas e de baixa renda, graças a Lei de Cotas, que reserva 50% das vagas para estudantes de escolas públicas e também garante reservas étnico-raciais”, explica. “E muitos estão desistindo por diversos motivos, além da perda de renda, estão tendo de cuidar de parentes doentes”, lamenta Grossi, que também é coordenadora do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (Nigs) da UFSC. Para ela, é preciso união de todos os setores da sociedade para minimizar os impactos negativos da crise sanitária sobre a educação.

“Tenho certeza de que 2021 vai ser um ano de muito mais luta. Antes da pandemia lutávamos por mais recursos, mais bolsas, mas, infelizmente, com a crise provocada pelo novo coronavírus e com os ataques feitos pelo governo, precisaremos lutar para mostrar o quanto a educação e a ciência são fundamentais para a saúde e a economia”, afirma Grossi.

Luiz Antônio Cunha, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concorda que o governo atual pratica uma política conservadora “para reduzir a uma frenagemde secularização da cultura” e que, por isso, todos precisarão lutar para conter novos ataques. “Ele (o governo) tem essa proposta clara de desenvolver essa ideologia e conta com uma ‘super’ ministra encarregada de implementar e supervisionar tudo, que é a Damares Alves”, afirma. “Tanto que ela conseguiu que o governo publicasse o Decreto nº 10.570, em 9 de dezembro de 2020, que criou a ‘Estratégia Nacional de Fortalecimento dos Vínculos Familiares’. O Decreto a que ele se refere também instituiu o ‘Comitê Interministerial da Estratégia Nacional de Fortalecimento dos Vínculos Familiares’, cuja secretaria executiva será exercida pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). “O cenário não é dos melhores e as perspectivas também não, mas não deixaremos de lutar. E para enfrentar essa desigualdade social que assola o País, teremos de pensar em políticas de enfrentamento na articulação entre saúde, educação e assistência social”, conclui a presidente da Anped.

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Vivian Costa – Jornal da Ciência