O resgate da inovação

Em documento produzido por cientistas e especialistas, a SBPC entregou ao governo uma proposta completa para a nova Política Nacional de Inovação

Nos últimos 40 anos, a produção de grãos no Brasil aumentou 20.000%, enquanto a área plantada cresceu apenas 62%. Ou seja, o Brasil produz muito mais quilos de grãos por hectare plantado. Os dados são da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e demonstram o enorme ganho de produtividade que fez com que o Brasil alcançasse um posto entre os líderes mundiais das exportações de produtos agrícolas. No ano passado, o agronegócio exportou US$ 96 bilhões, respondendo por 42% das vendas do País ao exterior.

Para o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu de Castro Moreira, o desempenho do agronegócio é resultado de uma longa história de investimentos maciços em tecnologia e inovação, que trouxeram o melhoramento de plantas, solos, nutrição e defensivos.

“Se hoje o Brasil tem um excelente desempenho da balança comercial do agronegócio, isso se deve em grande parte às pesquisas realizadas pela Embrapa”, afirma Moreira, referindo-se à estatal Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias. Ele espera que esse histórico seja levado em conta este ano em que o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) prepara uma nova Política Nacional de Inovação (PNI).

A nova PNI ficou aberta à consulta pública do dia 8/11/2019 até o dia 20/1/2020. Segundo a assessoria de comunicação do Ministério, 552 pessoas físicas e jurídicas fizeram contribuições ao documento, respondendo ao menos uma questão. A previsão é que, após a análise dos resultados da consulta em março, sejam definidos um plano de ação, a forma de implementação e a governança do plano, que deve ser finalizado e apresentado no segundo semestre.

Em declarações à imprensa, o secretário de Empreendedorismo e Inovação do MCTIC, Paulo Alvim, disse esperar que a nova PNI estruturasse as ações governamentais na área pelos próximos dez anos (2020-2030).

A SBPC foi uma das instituições que contribuiu com o projeto do governo, entregando a Alvim, no dia 4 de fevereiro, um documento com propostas para a nova PNI, cuja síntese está no quadro “Dez propostas para destravar a inovação”.

Mentalidade inovadora

Elaborado por um Grupo de Trabalho (GT) da Comissão de Financiamento à Pesquisa e de Política Científica da SBPC, liderado pelo neurocientista Sidarta Ribeiro, o documento da SBPC aborda todas as vantagens, oportunidades e obstáculos, identificados a partir da experiência de 16 cientistas e especialistas renomados que compõem a Comissão.

O trabalho faz um mapeamento das ações voltadas ao fomento de uma mentalidade inovadora e a integração entre todos os agentes; aborda questões como burocracia, incentivos e reforço a programas bem sucedidos. Na parte da educação e formação de recursos humanos, sugere o incremento para os doutorados industriais e iniciação científica nas empresas. “A ideia é que se a pessoa está na interface entre os dois mundos, ela vai ter um olhar inovador para o mercado, porque tem uma visão da utilidade do que ela está desenvolvendo, como um produto para o consumidor e não apenas uma boa ideia”, explica Sidarta Ribeiro.

O texto entregue ao MCTIC sugere que o governo recupere e aproveite diagnósticos, análises e recomendações formuladas em estudos anteriores, como o Livro Branco (de 2001), que sintetizou as linhas de uma política para a década seguinte; o Livro Azul, que resultou da IV Conferência Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação (CNCTI, de 2009); o relatório derivado do encontro nacional ENCTI 2016-2022 e o Projeto de Ciência para o Brasil (2018), da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

Faz uma importante reflexão sobre a falta de mentalidade para a inovação e a desconexão entre as expectativas de pesquisadores e da indústria. Na questão da burocracia, o documento aponta que os pareceres e acordões emitidos por órgãos de fiscalização e controle, como os tribunais de contas e ministério público, agem de forma mais proibitiva e punitiva, sufocando e engessando a atividade de inovação e a interação público-privada.

O documento indica a necessidade de ampliação do diálogo com as entidades científicas e tecnológicas como a ABC, a Anprotec, a própria SBPC; com instituições de pesquisa e universidades e, principalmente, com o setor empresarial.

O objetivo é recuperar a capacidade de inovação do País. De acordo com o relatório sobre o Índice Global de Inovação (IGI), em 2019 o Brasil obteve uma pontuação geral de 33,82, em uma escala de zero a 100 no ranking, permanecendo na 66ª posição de um total de 129 países. No período de 2011 a 2019, o ranking mais alto de inovação global do Brasil foi a 47ª posição em 2011 e o mais baixo foi a 70ª posição em 2015. Nos últimos nove anos, o País perdeu 19 posições.

Investimentos

Uma pré-condição para a existência de inovação é a educação, ressalta Ildeu Moreira. “O grande desafio, com o qual todos devemos nos preocupar, é melhorar a educação em geral no País, oferecendo uma formação científica para toda a população”, diz Moreira. E acrescenta: “Avançamos muito em colocar todos os jovens na escola, mas a qualidade é ainda muito inferior”. “Na realidade, inovação não existe em nenhum lugar do mundo sem que você tenha uma boa educação, uma boa ciência, uma boa tecnologia”, completa a cientista da computação, Francilene Garcia.

Ex-secretária executiva da pasta de Ciência e Tecnologia do Estado da Paraíba, ex-diretora-geral da Fundação Parque Tecnológico do estado (PaqTcPB), Garcia afirma que, antes de discutir novos planos, é preciso assegurar a existência de um Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, sem o qual não há inovação.

“O primeiro desafio que colocamos no documento é a garantia de alcançar, nos próximos anos, entre 2% a 3% do PIB em investimentos em pesquisa e desenvolvimento”, destaca Francilene Garcia. “Temos presenciado um verdadeiro desmonte nessa área no País”, diz ela, referindo-se a medidas do Executivo visando à extinção da principal fonte de financiamento da pesquisa científica no Brasil, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (FNDCT) e propostas de fusão de agências como CNPq, Capes e Finep. A extinção do FNDCT foi derrubada no Congresso, mas ameaças continuam pairando sobre as agências.

“O que apontamos é a necessidade de não reinventar a roda”, define Sidarta Ribeiro. Para ele, uma PNI tem que se basear no que foi feito nas últimas décadas, quando o País deu um salto significativo em diversas áreas. Entre os casos de sucesso destacam-se, além da Embrapa com a agricultura e o programa do etanol como combustível (PróAlcool), a Petrobras com a descoberta do pré-sal e a Embraer com a aviação regional.

Indústria

Além daquelas pré-condições, a SBPC destaca a necessidade de um cenário de retomada do desenvolvimento econômico, particularmente da indústria, como fundamento para o resgate da inovação. Sidarta Ribeiro diz que existe uma questão particularmente difícil na inovação brasileira que é a transformação da pesquisa aplicada em produtos, serviços e soluções para a população.

“É um problema no Brasil que vem sendo empurrado de um lado para o outro, mas esse novo documento que a SBPC produziu reconhece esse problema, não coloca simplesmente no colo da indústria ou da universidade, e entende que diz respeito a uma nova cultura, que envolve assumir riscos e também lucrar”, explica.

Para Carolina Bagattolli, professora do Departamento de Economia do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), os retrocessos brasileiros na inovação têm raízes profundas. “Seria necessário resolver questões estruturais decorrentes da nossa inserção periférica na ordem global”, opina. Há 15 anos dedicando-se à análise da Política de Ciência, Tecnologia e Inovação (PCTI) no Brasil, Bagattolli chama a atenção para a necessidade de avaliação das políticas públicas na área – o que também é defendido no documento da SBPC.

Para ela, porém, essa avaliação precisa considerar o processo de tomada de decisão – que se dá a partir da interação entre diferentes atores políticos, com características, projetos políticos e recursos de poder distintos. “Não estou com isso reduzindo as graves implicações decorrentes da redução sistemática de recursos públicos para a área de CT&I – isso sem falar dos impactos dos demais ataques ao complexo público de ensino e pesquisa, como a portaria nº 2.227 (de 31/12/19, que limitou as viagens de pesquisadores e professores das universidades) e o recente ofício do MEC sobre a execução orçamentária”.

“Do ponto de vista empresarial, inovação é essencialmente uma agenda econômica, que depende muito da atividade econômica, e o Brasil está mal nesse campo”, analisa Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Ele lembra que as empresas inovam em função de suas estratégias de competição.

Para o executivo da Fapesp, uma política de inovação tem múltiplas faces – formação de recursos humanos, startups, difusão de tecnologia –, mas alguns temas são mais relevantes e urgentes. Primeiro, dar mais atenção à difusão de tecnologias já existentes para indústrias mais atrasadas; depois, capacitação tecnológica, sobretudo nas áreas novas de big data, Inteligência Artificial, datascience; e também incentivo às atividades de pesquisa, sobretudo no setor industrial, que têm que ser subvencionadas, pois envolvem riscos.

Pacheco recomenda ainda uma forte ênfase em pequenas empresas de tecnologia (startups) porque elas trabalham com as grandes e são as que mais disseminam a tecnologia, além de gerar mais empregos e oportunidades. Mas ele alerta que essa agenda só dá certo se a economia crescer e se houver persistência, continuidade, pensando em estratégias de médio e longo prazo. “A tragédia do Brasil são as mudanças repentinas de políticas”, conclui Pacheco.

Veja aqui o PDF do documento.

Janes Rocha – Jornal da Ciência

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