Os cientistas – Bolsonaro,100 dias

Sob Bolsonaro, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações aprofunda o desmonte do sistema de financiamento à pesquisa iniciado por Temer: o país que rumava em direção à internacionalização da pesquisa terá que recuar ao provincianismo de outrora

Nos últimos anos, os orçamentos destinados à ciência e à tecnologia pelo governo federal foram drasticamente reduzidos. Uma expressão cristalina desta assertiva é que o orçamento de 2019 para C&T equivale, se corrigido pela inflação, à metade do executado em 2013. Ora, não há desenvolvimento possível sem recursos. É enganoso, portanto, certo discurso de matiz patriótico e suposto compromisso com o desenvolvimento nacional, quando os recursos destinados a este fim são cortados.

Nestes 100 dias de governo Jair Bolsonaro, evidencia-se o desmonte do sistema de financiamento à pesquisa que havia apresentado resultados alvissareiros nos últimos anos. O orçamento do Ministério da Educação teve corte de R$ 5,8 bilhões; o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), R$ 2,1 bilhões. Só o orçamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq), principal agência de fomento à pesquisa científica no país, enfrenta agora um rombo de R$ 300 milhões. “Não existe plano B. Não temos como fechar as contas; isso é um fato”, afirmou o atual presidente do CNPq, João Luiz Filgueiras de Azevedo, em entrevista ao Jornal da USP, em março.

O orçamento do CNPq caiu de R$ 1,4 bilhão, em 2018, para R$ 872 milhões, em 2019, o que implica uma redução de 38%. Somente o pagamento das bolsas em vigor comprometem cerca de R$ 900 milhões de reais, portanto mais do que a previsão orçamentária. Essa situação implicará a descontinuidade de pesquisas em andamento e, principalmente, a impossibilidade de financiamento de novos projetos. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico (FNDCT), uma das principais fontes de financiamento à pesquisa no país, teve uma redução de 65,46% do orçamento executado entre 2015 e 2018.

Nessa senda, o país que rumava em direção à internacionalização da pesquisa terá que recuar ao provincianismo de outrora, pois os recursos para tal rubrica atendem apenas 4% das propostas recebidas, quando, em 2013, foram atendidos cerca de 33% dos pedidos.

Para pensar as ações do MCTIC, devemos considerar a macro-política desta administração e de redirecionamento do capitalismo global em direção a um sistema que, cada vez mais, se distancia de valores almejados no pós-Segunda Guerra Mundial, lastreados na democracia representativa, na procura do bem-estar social e na laicidade do Estado.

O que acontece no Brasil não é um caso isolado, mas está associado à expansão de um modelo de Estado neo-autoritário em diferentes áreas do planeta. Essa expansão conservadora está a ferir de morte a democracia liberal, mesmo onde se acreditava que ela estava consolidada.

No Brasil, as políticas de consolidação desse modelo de democracia pouco duraram e ora assistimos ao desmantelamento do precário sistema arquitetado no período da redemocratização. Nessa conjuntura, o governo Bolsonaro é a expressão dos interesses de setores extremamente agressivos e predatórios de um capitalismo neoliberal subordinado.

Ao final de 2018, um manifesto assinado por representantes da Academia Brasileira de Ciências (ABC), da Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino (Andifes), do Conselho Nacional das Fundações de Amparo à Pesquisa (Confap), do Conselho Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de Ciência e Tecnologia (Consecti), do Fórum Nacional de Secretários Municipais da Área de Ciência e Tecnologia e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) denunciou as implicações dos cortes orçamentários e a gravidade da situação, que terá efeitos catastróficos para a estrutura de pesquisa no país e para os setores empresariais que investem em inovação.

Uma das repercussões mais visíveis e deletérias do desmantelamento do sistema se refere ao sucateamento das universidades públicas, que estão à beira do colapso. O ensino superior de qualidade no país se concentra nas instituições públicas (federais ou estaduais) que, em grande medida, dependem das agências de fomento para o financiamento à pesquisa, a edificação de laboratórios e a aquisição de equipamentos de alta tecnologia.

Políticas nefastas

No Brasil, há uma robusta estrutura que possibilitaria a produção e a gestão da ciência, da tecnologia e da inovação, desde que definidos os recursos necessários e se preservem as necessárias autonomias institucionais.

Cerca de 90% da produção científica é desenvolvida em instituições públicas, universidades e institutos de pesquisa. Os investimentos no campo sempre foram gerenciados por intermédio do CNPq, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), agora denominada como Empresa Brasileira de Inovação e Pesquisa. Adicionalmente, conta-se ainda com o suporte das agências estaduais de fomento à pesquisa.

Entretanto, o Brasil investe cerca de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) em C&T, quando os países desenvolvidos aplicam de 2% a 3,5%. Ao longo dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, verificou-se o crescimento contínuo do orçamento para a pasta entre 2005 e 2016. Conforme dados de diferentes agências e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), passou-se de 1 para 1,34% do PIB neste período e havia uma promessa de se chegar a 2% em 2019. Infelizmente, o que se viu com a inversão de prioridades após o impeachment foi a inviabilização do setor por meio de orçamentos minguados e de políticas nefastas.

Nos países capitalistas desenvolvidos a maior parte dos investimentos provém do setor privado. No Brasil, aportes privados, mesmo considerada a robusta contribuição das empresas estatais, representam menos da metade do aplicado no setor. Historicamente, a iniciativa privada brasileira pouco investe em ciência, tecnologia e inovação, não demonstra visão de longo prazo e, de modo reiterado, quando disponibiliza recursos para o financiamento à pesquisa, busca retornos imediatistas.

A crise, porém, é sistêmica. Qualquer ação no âmbito deste Ministério estará fadada ao fracasso se continuar vigente a Emenda Constitucional 95/2016, a chamada “PEC do Teto dos Gastos Públicos” aprovada durante a gestão de Michel Temer, por um Congresso marcado por escândalos e pelo conluio de agrupamentos de pressão, com o apoio dos oligopólios midiáticos.

A emenda limitou os gastos públicos por 20 anos, o que impactou severamente diferentes áreas do governo e, em especial, a área de ciência e tecnologia. Área esta que voltou a ser tratada como mera “geradora de gastos” e não como receptora de investimentos necessários para o desenvolvimento científico e tecnológico do país. Esse congelamento de gastos públicos significou uma pá de cal sobre os sonhos de soberania nacional e justiça social.

Além disso, a reforma implementada por Temer deixou uma inadequada estrutura ministerial: a agregação estapafúrdia do espólio do antigo Ministério das Comunicações de tal modo que o gestor da Ciência, Tecnologia e Inovação deva gerenciar os Correios e outras estruturas que nada têm a ver com o campo – apenas para ficar em um exemplo.

No governo Bolsonaro, a composição do novo Ministério, como outras pastas, possui avultada participação de militares em postos para os quais, a rigor, não possuem qualificação técnica e/ou reconhecimento no campo científico. Acrescente-se a escolha do astronauta Marcos Pontes para comandar a pasta. O tenente-coronel possui formação científica, mas, efetivamente, não tem as qualificações necessárias à gestão da área e tampouco demonstra experiência administrativa correlata.

Não há saída possível se prevalecerem essas estruturas, esse estrangulamento orçamentário e essas políticas nefastas. Os efeitos correlatos sobre a sociedade brasileira serão devastadores.

Por Sidnei J. Munhoz é Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Organizador, com Francisco Carlos Teixeira da Silva, de Relações Brasil-Estados Unidos: séculos XX e XXI (Eduem, 2011)

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